quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Poéticas do devaneio

Gaston Bachelard (1884 – 1962) foi um autodidata que revolucionou a crítica literária construindo uma poética sob o signo dos quatro elementos: o fogo, a água, a terra e o ar. Poética esta que classifica as imaginações materiais de acordo com os elementos da natureza, desenvolvendo, dessa forma, um meio de caracterizar os diversos complexos que povoam a mente humana. 
Partindo da obra do pensador francês será apresentada uma análise de poemas de Mário Quintana e João Cabral de Melo Neto a título de possibilidade de leitura e reflexão, deixando um poema para que as postagens considerem uma possível interpretação pautada na poética do fogo.
Bachelard relaciona em A psicanálise do fogo os complexos humanos em decorrência do elemento fogo. No capítulo I, Fogo e Respeito, aborda o complexo de Prometeu, figura mitológica que roubou o fogo de Zeus e o deu aos homens. Dentro desta abordagem, esse complexo designa toda a tendência que nos impulsiona para a conquista, para o conhecimento, para a superação, desafiando nossos limites e aqueles impostos pela própria natureza, pois a invenção do fogo determina, segundo Bachelard, a passagem do estado de natureza para o estado de cultura, sendo o elemento mediador da civilização.
Fogo e Devaneio (capítulo II ) faz com que vislumbremos o fogo como algo vivo capaz de acender nossas mentes, de subjugar nossas vontades, fazendo com que a imaginação queime juntamente com as labaredas, chegando ao ponto de consumir nossa própria vida: o complexo de Empédocles. Empédocles precipitou-se na cratera do Etna, consagrando a sua forma sem confessar a sua fraqueza, pois a morte pelas chamas é a mais solitária das mortes, é total e sem traço.
No capítulo III, Bachelard apresenta a visão sexualizada do fogo, onde o atrito que gera calor está relacionado ao ato sexual através da necessidade do calor compartilhado – o complexo de Novalis. No capítulo seguinte apresenta o fogo sexualizado (elemento masculino juntamente com o ar), um imenso devaneio sexual, onde o fogo é também elemento formador que permitiu ao homem o acesso à cultura e à civilização. Já o complexo de Hoffmann (capítulo VI ) traz a comunhão da vida e do fogo, onde o álcool é um fator de linguagem, enriquece o vocabulário e liberta a sintaxe.
Por fim, no capítulo VII, o fogo é, ao mesmo tempo, símbolo da pureza e da impureza. Enquanto símbolo do pecado, liga-se ao fogo sexualizado, podendo também tornar-se um símbolo de pureza porque é um elemento purificador, bem como a luz que brilha sem queimar: o fogo idealizado.

 
POEMA ENTREDORMIDO AO PÉ DA LAREIRA
Mário Quintana

  1. O anjo depenado tremia de frio
  2. Mas veio o Conde Drácula e emprestou-lhe a sua capa negra
  3. Na litografia da parede
  4. Helena a bela grega
  5. Mantém sua pose olímpica... Desloca-se um tição:
  6. Uma chama
  7. Começa a lamber como um gato minha perna de pau.

O poeta revela, através do seu devaneio, o complexo de Empédocles presente no poema, pois as chamas da lareira o levam ao mundo do impossível e do imaginário, fazendo com que o bem e o mal sejam representados pelo anjo e pelo Conde Drácula (verso 2), no qual ele se vê como um anjo imperfeito, “depenado” (verso 1), significando, ao lado do Drácula, a libertação da fantasia.
O complexo de Novalis também pode ser observado no poema através da sensualidade presente nas chamas. Quando uma delas age como um gato que vai, devagar e manhosamente, tomando conta, o seduz e convida a fazer parte do fogo (verso 7). Todo esse “diálogo” com as chamas também revela o complexo de Hoffmann pela combustão que ocorre na imaginação do autor.
O próprio poema traz em si o fascínio pelo fogo e a influência dele no seu devaneio, pois quando ele – o eu lírico – desvia a sua atenção das chamas, consegue vislumbrar a realidade a sua volta, mostrando que na ausência do fogo as imagens mantém sua frieza e passividade (versos 3,4 e 5). Assim sendo, o entredormido reforça a ideia do poema, que conduz ao devaneio mas que em dado momento retoma o mundo real quando se afasta do feitiço das chamas.

 
DE BERNARDA A FERNANDA DE UTRERA
João Cabral de Melo Neto

  1. Bernarda de Utrera arranca-se o cante
  2. quando a brasa chama a si as chamas:
  3. quando ainda brasa, no entanto quando,
  4. chamado a si o excesso, se desinflama.
  5. Ela usa a brasa íntima do quando breve
  6. em que, brasa apenas e em brasa viva,
  7. arde numa dosagem exata de si mesma:
  8. brasa estritamente brasa, inexcessiva.

9. Fernanda de Utrera arranca-se o cante
10. quando a brasa extenuada já definha:
11. quando a brasa resfriada já se recobre
12. com o cobertor ou as plumas da cinza.
13. Ela usa a brasa íntima no quando longo
14. em que rola calor abaixo até a pedra;
15. no da brasa em pedra, no da brasa do frio:
16. para daí reacendê-la, e contra a queda.

O poema de João Cabral de Melo Neto retrata as atitudes de duas mulheres diferentes perante a relação sexual, seus medos, pudores, desejos e satisfações, bem como a maneira como elas expressam esses sentimentos. Para tanto, o fogo serve de instrumento para esta representação, ora como brasa ardente, chama enfim, ora como brasa extenuada sob o cobertor das cinzas. O fogo como “combustão” espontânea dos desejos e pudores caracteriza o complexo de Hoffmann: sempre como brasa, ou mais viva ou mais fria, mas sempre brasa (versos 1, 2, 9 e 10). A representação das mulheres está totalmente associada ao fogo, à chama.
Apesar do complexo de Hoffmann estar presente em todo o poema, é o complexo de Novalis que concede o verdadeiro sentido ao poema. Através da retratação do ato sexual por meio da comparação com a brasa, o fogo aparece como elemento representativo do desejo sexual.
O texto usa um código cheio de metáforas associadas ao fogo para representar o ato sexual. As imagens de penetração, de ascensão térmica e de calor representadas pela brasa íntima (versos 6, 7, 8, 14, 15 e 16) fazem com que as mulheres revelem seus sentimentos com relação ao sexo. Bernarda, ardente e ousada em busca do prazer breve (versos 2, 3 e 4), enquanto que Fernanda mostra-se com mais pudores, exigindo proteção e amparo (versos 10, 11 e 12).

Segue o poema para análise e interpretação:

 
INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA
Mário Quintana

  1. A vida é um incêndio; nela
  2. dançamos salamandras mágicas.
  3. Que importa restarem cinzas
  4. se a chama foi bela e alta ?
  5. Em meio aos toros que desabam,
  6. cantemos a canção das chamas !
  7. Cantemos a canção da vida,
  8. na própria luz consumida...

O texto histórico como artefato literário

Em O texto histórico como artefato literário, capítulo 3 de Trópicos do Discurso, Hayden White apresenta uma discussão sobre o que a meta-história tenta fazer: manter-se atrás dos pressupostos que conferem sustentação a um dado tipo de investigação e formular as perguntas que a sua prática pode requerer. Destaca como sendo “um problema que nem os filósofos nem os historiadores encararam  com muita seriedade e ao qual os teóricos da literatura só têm concedido uma atenção momentânea” (p.98). Isso diz respeito ao status da narrativa histórica, um artefato não-sujeito a controles experimentais ou observacionais. Enfatiza também a relutância em considerar as narrativas históricas como aquilo que elas manifestamente são: “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com seus equivalentes na literatura do que com seus correspondentes nas ciências” (p. 98).

Ora, é óbvio que esta fusão da consciência mítica e da história ofenderá alguns historiadores e perturbará aqueles teóricos literários cuja concepção de literatura pressupõe uma oposição radical da história à ficção ou do fato à fantasia. (...) O que Frye diz é bastante verdadeiro enquanto afirmação do ideal que inspirou a escrita histórica desde a época dos gregos, mas esse ideal pressupõe uma
oposição entre mito e história que é tão problemática quanto venerável. Ela serve muito bem aos propósitos de Frye, visto que lhe permite localizar o especificamente “fictício” no espaço entre os dois conceitos de “mítico” e “histórico”.(...) “Toda a obra de literatura”, insiste Frye, “tem ao mesmo tempo um aspecto ficcional e um aspecto temático”, mas quando nos movemos da “projeção ficcional” para a articulação aberta do tema, a escrita tende a assumir o aspecto de “comunicação direta, ou escrita discursiva imediata, e deixa de ser literatura”.(p. 98-99).

WHITE, Hayden.
O texto histórico como artefato literário.
In: _____.Trópicos do discurso.
Tradução: Alípio Corrêa de Franca Neto.
São Paulo: Edusp, 1994.

O jogo do texto

Segundo Wolfgang Iser, "o jogo encenado do texto não se desdobra, portanto, como um espetáculo que o leitor meramente observa, mas é tanto um evento em processo como um acontecimento para o leitor; provocando seu envolvimento direto nos procedimentos e na encenação. Pois o jogo do texto pode ser cumprido individualmente por cada leitor, que, ao realizá-lo de seu modo, produz um 'suplemento' individual, que considera ser o significado do texto. O significado é um 'suplemento' porque prende o processo ininterrupto de transformação e é adicional ao texto, sem jamais ser autenticado por ele." 

In: LIMA, Luiz Costa (org.). A literatura e o leitor. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 116.