terça-feira, 30 de maio de 2017

As narrativas distópicas do Século XX: características comuns

Dando sequência às atividades do curso "Sob a égide do totalitarismo e autoritarismo: a literatura como reflexão", neste post nos dedicamos a algumas características das narrativas distópicas. Sobre o curso vocês podem ver seus objetivos aqui, e também conferir o texto-resumo anterior em que discutimos o contexto social a que estas publicações estavam inseridas. Aproveitamos para também convidá-los a ler este material sobre crítica cultural e sociedade que pode colaborar com nossas interpretações, 

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Resumo
As narrativas distópicas do Século XX: características comuns

Por Douglas Eralldo



A esta altura do curso “sob a égide do totalitarismo e autoritarismo: a literatura como reflexão” já temos uma ideia do contexto social e histórico no qual uma série de publicações consideradas como distopias foi florescendo ao longo do Século XX. Sobre isto precisamos levar em consideração toda a extensa discussão teórica acerca dos gêneros literários que perdura há muitos anos e nos remete às reflexões de Platão e Aristóteles que já debatiam as classificações das peças literárias. Hoje em dia a flacidez, e mesmo a possibilidade do fracasso dos gêneros é uma discussão presente e que deve ser observada. Dito isso, não custa ler o que diz Angélica Soares:
A teoria dos gêneros é vista como meio auxiliar que entre outros, nos leva ao conhecimento do literário, mas nunca deve ser usada para valorização e julgamento da obra. Por outro lado, o fato de um texto apresentar características dos gêneros, por si só, não nos leva a localizá-lo na literatura. (SOARES, 2007, p.21)
            Além disso, Soares relembra que “os traços dos gêneros estão em constante transformação; portanto, no ato de leitura, nos devemos conduzir abertamente pelas mudanças e não por características fixas”[1] o que estabelece um diálogo com José Castelo ao dizer que “o Século XX se encarregou de fracionar e desfigurar os gêneros literários” e demonstrar que “hoje, já não podemos falar, com a mesma segurança, da tipologia do romance, já que os limites do romance histórico, o autobiográfico, o picaresco, o de formação etc., são cada vez mais flácidos”. Portanto, ainda que não nos sejam os princípios condutores de nossas reflexões e interpretações críticas neste trabalho, todavia, levaremos em consideração toda a problemática relacionada aos gêneros literários tomando-os então como auxílio no estabelecimento de um conjunto de obras a reunir elementos comuns capazes de constituir um gênero, ou, pelo menos, serem reconhecidos de tal forma, como é o caso das:

            Distopias
           

            Nessa perspectiva dos gêneros literários, nos dedicaremos então à literatura distópica, e conforme observa Kopp:
Foi durante o século 20 que a literatura distópica se consolidou, tomou corpo, ganhou notoriedade e se firmou como uma das marcas desse tempo. Houve condições para isso, para a emersão de uma forma de pensar, imaginar e escrever sobre o futuro como um tempo no qual as coisas se tornariam piores. (KOPP, 2011, p.10)
            Todavia, é preciso levarmos em consideração que o termo distopia já fora cunhado por John Stuart Mill num discurso no parlamento da Irlanda em 1868. Ao dizer a expressão, Mill já colocava-a em antítese à utopia, contraste semelhante que Erich Fromm utiliza em sua leitura de 1984, de George Orwell ao dizer que “as utopias negativas expressam o sentimento de impotência e desesperança do homem moderno assim como as utopias antigas expressavam o sentimento de autoconfiança do homem pós-medieval”[2]. Entretanto, ainda que utopia e distopia coloquem-se então como antítese, não podemos desprezar os apontamentos de Fromm ao dizer que ambas surgem como crítica social ao momento a que cada pensamento está inserido.
No caso das distopias, geralmente os estudos apontam para seu surgimento como gênero a partir da publicação do romance Nós, do escritor russo Yevgeny Zamyatin. A obra começou a ser escrita em 1920 e foi publicada em inglês em 1924. Por causa desta peculiaridade o romance foi chamar atenção das autoridades soviéticas apenas após os anos 30, o que veio causar uma série de perseguições ao autor. Entretanto não se poderá pensá-lo [o romance Nós] como uma crítica ao Stalinismo, pois como podemos observar, sua publicação dá-se antes da existência do regime totalitário de Stálin, contudo consegue apresentar “uma antevisão brilhante dum sistema que quis dar aos homens a felicidade (a organização) em troca da liberdade”[3]. Considerado então precursor do gênero (e aqui não desprezamos outras publicações anteriores que já continham o caráter distópico, como comumente aceito por estudiosos como O Tacão de Ferro, de Jack London), Nós geralmente é como uma das primeiras narrativas do gênero distopia, sendo a precursora de um conjunto de obras que passaram a questionar a utopia e refletir sobre os regimes totalitários. É o caso dos romances que compõe as leituras sugeridas para este projeto, como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932), 1984, de George Orwell (1949) e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953). No caso de narrativas brasileiras, destacamos neste conjunto a obra de Ignácio Loyola de Brandão, Não Verás País Nenhum (1982). É a este conjunto de obras sugeridas que buscaremos observar no que se aproximam e no que se distanciam.
Cada uma destas obras propõe diferentes olhares sobre “o distópico”, e, publicadas em diferentes décadas avançam e se complementam de modo a não escaparem da afiliação dentro de um mesmo gênero. Vale ainda destacar que não se excluem aqui outras publicações dentro do gênero, ou semelhantes. Contudo, esta seleção reúne os principais traços significativos e característicos do gênero e geralmente estão incluídas pela crítica dentro do cânone das narrativas distópicas. Entrementes vale ressaltar que as publicações do tipo são vastas, Booker em seus estudos sobre as distopias apresenta uma ampla relação de obras que considera como distopias. Mas para efeito destas reflexões, a observação dos elementos presentes no conjunto referido dar-nos-á um panorama capaz de captar a essência do texto distópico, ainda que por meio de reflexões iniciais. Dito isto, a partir de agora pretendemos por meio da leitura dos livros sugeridos para o respectivo projeto, delinear alguns dos traços relevantes ao que veio ser conhecido como distopia, a começar por suas respectivas abordagens e olhares sobre o:

            O Estado Totalitário

            Não se ignora aqui os regimes tirânicos, déspotas, absolutistas etc. que precederam o Século XX, porém como revela Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo, o estado totalitário que viemos a ter como referência dá-se com o regime stalinista a partir de 1927 e com o nazismo de Hitler a partir de 1938. Reforça-se com isso a capacidade dos autores de antecipar ou apresentar tendências de movimentos sociais que podem ou não a ser efetivados na “prática real”. É o caso de Zamyatin e Huxley que apontam para isso antes mesmo da efetivação dos dois principais Estados totalitários conhecidos em nosso percurso histórico recente. A existência de um Estado totalitário é, aliás, elemento central a todas as narrativas distópicas e revelam uma preocupação pertinente e presente na arte. Atribui-se a uma cruzada [e preocupação] de George Orwell contra o totalitarismo a escrita de seu último romance, 1984. Aldous Huxley também expressou semelhante preocupação em um prefácio para seu Admirável Mundo Novo em 1946. Nele, faz a importante observação de que “não há, por certo, nenhuma razão para que os novos regimes totalitários se assemelhem com os antigos” ainda assim ele coloca que “é provável que todos os governos do mundo venham a ser quase que completamente totalitários”[4] ao apontar para uma trégua momentânea de reacomodação de forças durante o pós-guerra. Se esta “previsão” de Huxley até então não veio a se confirmar de forma prática não podemos negar também que o autoritarismo está presente mesmo nas tidas “maiores democracias” do mundo e o recente e turbulento momento mundial, com o ressurgimento de pautas nacionalistas e extremistas, não invalidam as preocupações do autor, que em sua narrativa nos apresenta um estado totalitário distinto das referências históricas e de outras publicações do gênero, mas não menos eficiente que o totalitarismo imposto pela força.
            No caso das leituras citadas a existência de um estado totalitário une-se intrinsecamente, ainda que cada um destes estados totais possuam suas particularidades. No romance inicial do gênero a presença de um estado totalitário esta representada pelo Estado Único. Nesse estado toda e qualquer individualidade humana foi apagada e não raro o conceito é apresentado com escárnio pelo narrador D-503, que narra a obra a partir de entradas que se assemelham a um diário. Não temos porém a consciência plena do tamanho deste estado, contudo a percepção é de tratar-se de uma gigantesca metrópole onde todos são felizes e trabalham pela coletividade. Neste Estado em que o indivíduo é negado e a identidade difusa são todos apenas números, não há nomes ou qualquer identidade individual. A estrutura contém sua hierarquia cujo cume é a liderança do Benfeitor sempre reconduzido ao posto no Dia da Unanimidade. Aos números se aplicam uma série de restrições e limitações, entretanto nenhuma destas, percebidas ou motivos de queixas pelos indivíduos pertencentes ao Estado Único; ou seja, a adesão ao estado é plena. Contrastando com as limitações, há a política da transparência em que ninguém nada esconde do Estado e onde cada um deve denunciar desvios de conduta. Tais questões permitem a existência deste Estado Único vigilante, onde cada um dos números dá sua contribuição racional para o Estado, como o próprio narrador D-503, um engenheiro construtor de um grande foguete, o Integral. Em sua narrativa, as entradas de D-503 miram narratários doutros planetas contando em seu tempo presente “as maravilhas do Estado Único”. Isto, entretanto, sofrerá seus revezes. Em parte por causa do mundo externo, o que há do outro lado do muro verde, estrutura que coloca os habitantes do Estado Único de certa forma sob uma redoma.
Segundo estudiosos da literatura, tanto Orwell quanto Huxley foram leitores de Zamyatin e no caso de Admirável Mundo Novo a existência de um estado único é retomada com a ideia do Estado Mundial num mundo divido em diferentes regiões administrativas. Há na construção deste estado totalitário de Huxley uma grande proximidade com a obra utópica de Thomas Morus, A Utopia. Assim como na Ilha criada por Utopus, há por parte dos habitantes de Admirável Mundo Novo a busca pela felicidade e principalmente a necessidade produtiva de seus habitantes. No caso do Estado Mundial, a reprodução humana é controlada e dividida em castas de acordo com a necessidade funcional do Estado, e mesmo o gosto e a admiração pelas paisagens e pelas flores são restringidos pela hipnopedia durante a incubação, uma das etapas da produção humana. Neste Estado regido pela produção em massa e pelos ideais pressupostos por Henry Ford, o diretor do D.I.C nos lembra que “as flores do campo e as paisagens advertiu [o diretor], têm um grave defeito: são gratuitas. O amor não estimula a atividade de nenhuma fábrica”[5]. Eis aí outra característica fundamental do Estado Mundial de Huxley: a necessidade permanente de consumo. Mas do contrário do Estado Único de Zamyatin cujo controle estatal se dá pela repressão, no caso do Estado imaginado por Huxley, uma das ferramentas de controle é busca pelo prazer constante (e quando esta busca estivesse em risco haveria ainda o Soma, uma droga capaz de garantir a felicidade sempre). A eficiência do Estado Mundial de Huxley segue os princípios da fala do diretor quando dos primeiros capítulos do romance explicita a filosofia de gestão do Estado: “governar é deliberar, e não atacar. Governa-se com o cérebro e com as nádegas. Nunca com os punhos”[6]. Este trecho parece-nos convergir para a própria visão de Huxley sobre a eficiência máxima de um Estado totalitário:
um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes de um Poder Executivo todo-poderoso e seu exército de administradores controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão.(HUXLEY, 2016, p.14)
Este é um princípio que acaba regendo todo o Estado de Admirável Mundo Novo cujos pilares básicos são: Comunidade. Identidade. Estabilidade.
Se por um lado, na obra de Huxley o Estado não limita os prazeres, o contrário dá-se na Oceânia, o Estado totalitário regido pela figura do Grande Irmão, em 1984. Neste romance o Estado é controlado pelo Partido e vive às turras com os Estados externos, a Eurásia e a Lestásia, estando em guerra ora com um, ora com outro, de acordo com as necessidades do Grande Irmão. Estruturado sob a égide da tríade guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força o Estado de 1984 é intensamente vigilante e eleva-se a partir de uma série de restrições humanas e sob o permanente período de conflitos, o que dá estabilidade ao Estado totalitário do romance. Assim como os demais Estados totalitários distópicos, o de 1984 possui sua estrutura hierarquizada e distribuída entre os integrantes do partido através dos ministérios, da Verdade, responsável pelas notícias e entretenimento, o do Amor, responsável por manter a lei e a ordem e o da Pujança, responsável pelas questões econômicas. Sobre o poder do Estado de 1984, creio que algo nem sempre discutido, mas importante, é a informação dada à consciência de Winston Smith ao começar escrever seu diário de que “não que isso fosse ilegal (nada era ilegal, visto que já não existiam leis)”[7] mas que justamente por isso ser-lhe-iam possíveis diversas punições. Eis aí uma demonstração clara do permanente estado de exceção vigente em Oceânia. Aliás, o alcance do Estado em 1984 é tamanho que cristaliza a própria noção de pensamento-crime, o que por si só será sempre um tormento a Winston consciente de sua inodortoxia.
            Estes são possivelmente os três Estados totalitários sempre lembrados na perspectiva do gênero distópico, mas para nossas reflexões vale também destacar o romance brasileiro de Ignácio Loyola de Brandão, Não Verás País Nenhum que apresenta sua visão de Estado totalitário, e neste caso não se ausenta das questões e dilemas essencialmente brasileiros. O Estado totalitário desta distopia nacional nos parece bastante sensível às questões sociais nossas, especialmente por traduzir seu Estado numa palavra mais brasileira impossível: Esquema. Como característicos aos esquemas, a hierarquia do Estado de Brandão é envolta por uma névoa. Não há um rosto para o Esquema, ao mesmo tempo em que todos participam dele – mesmo o protagonista Souza –. Temos então no Esquema um sistema tomado pela corrupção sistêmica num país loteado e dividido entre multinacionais, desértico e árido, onde a ausência de recursos naturais como a água praticamente impossibilita sobrevivência humana. Aliás, tentar sobreviver é a única coisa que resta neste Estado em ruínas, mas cujas elites do Esquema permanecem inalcançáveis. A desolação é tamanha que o protagonista Souza a certa altura comenta “fomos nos habituando de tal modo que passamos a pactuar com a tragédia, aceitando-a como cotidiano”[8]. Além disso, outra questão de interessante contraste entre a publicação brasileira e as demais é que se em Admirável Mundo Novo e principalmente Nós a coletividade trabalha para a anulação do indivíduo em Não Verás País Nenhum o protagonista Souza aponta para uma das razões de força do Esquema: o individualismo. “Para massificar, ao mesmo tempo que isolaram cada pessoa em si, tornando-a ferozmente individualista...”[9] de tal forma que a oposição ao Esquema jamais acontece porque ou estão todos preocupados com os próprios umbigos ou tentando sobreviver e resistir à miséria extrema.
            Vejamos então que nos exemplos até aqui apresentados há a presença clara e manifesta de um Estado totalitário, que já não é bem o caso de Fahrenheit 451. Este por sinal, aproxima-se mais de outra obra geralmente tida como distopia, Laranja Mecânica, de Anthony Burgess. Em ambas os protagonistas estão imersos numa ação que não abre ao contexto geral do Estado a que estão inseridos, mas que, entretanto, o autoritarismo e o totalitarismo permeiam a estrutura social presente em suas narrativas e agem diretamente sobre suas personagens.  No caso de Fahrenheit 451 temos provavelmente os Estados Unidos após os anos 1990 e depois de terem vencido duas guerras atômicas, e ainda que não tenhamos nele um Estado totalitário visível, no mínimo podemos dizer que se encaminha para tal. Além disso, esta diferença com as demais obras facilmente pode explicar-se justamente pela elasticidade dos gêneros, pois há na obra de Ray Badbury outros elementos que p aproximam das demais narrativas distopicas, como o que diz respeito ao:

            Controle Estatal
    
            Em Fahrenheit 451 temos exemplos de uma série de formas de controle por parte do Estado. A mais evidente e marcante para a estrutura do romance é a destruição do conhecimento dada a partir da função dos bombeiros nesta obra: queimar livros. Esta é a função do protagonista Guy Montag, casado com Mildred, esta segunda evidencia o sucesso do controle estatal através da alienação conseguida por meio do entretenimento de massa, pobre de qualquer reflexão. Mildred assim como a grande parte da sociedade de Fahrenheit 451 permanece absorta diante das televisões instaladas nas paredes dos lares americanos. Temos aqui um diálogo forte entre Bradbury e Huxley, pois ambos trazem para as distopias a reflexão de como as tecnologias podem vir a ser utilizadas pelos Estados totalitários ou autoritários, que vai além da questão do entretenimento. No romance de Bradbury isso se amplifica na fuga de Montag, perseguido por um sabujo mecânico e acompanhado por uma câmera portátil que transmite a ação ao vivo. A ação espetaculosa, aliás, é um dos recursos dos filmes exibidos nos Cinemas Sensíveis de Admirável Mundo Novo cuja tarefa é justamente entreter seus habitantes de modo que os níveis de felicidade nunca caíam. Todavia o auge do controle do Estado Mundial de Huxley já se dava durante o processo de fabricação dos seres humanos e as diversas castas necessárias ao Estado. O condicionamento se dava ainda durante a incubação por meio da hipnopedia, indução feita através do sono. Entretanto, se uma coisa pode-se dizer do Estado Mundial é que este sempre foi muito precavido e mesmo com o condicionamento hipnótico, o Estado ainda mantinha o Colégio de Engenharia Emocional com a função de estudar sempre novas formas da manutenção da “felicidade”, que em último caso seria garantida pelo Soma[10]. O controle por condicionamento hipnótico, aliás, voltará a ser discutido pelo Processo Ludovico em Laranja Mecânica estabelecendo a lavagem cerebral com forma de controle da violência. Na verdade, o que não faltam às narrativas distópicas são as múltiplas formas de obtenção do controle por parte dos Estados totalitários, e sempre de com sucesso. Se em Admirável Mundo Novo sua população ama sua escravidão, o narrador D-503 de Nós se espanta com os desejos de liberdade dos povos primitivos a ponto de não compreender tal irracionalidade como quando diz: “muitas histórias incríveis dos tempos em que as pessoas viviam num estado livre, isto é, desorganizado, selvagem”[11]. Notemos que no romance, até ser posto diante certos acontecimentos, D-503 é um adepto do Estado totalmente incapaz de perceber qualquer outra forma política. Já em 1984 a adesão ao Estado totalitário dá-se pelo contrário, não pelo desejo e aceitação, mas sim pelo medo e pelas restrições dos desejos, como no caso da Liga Juvenil Antissexo. Na obra de Orwell o medo inclusive justifica-se diante os diversos meios de vigilância do Grande Irmão. O romance já com a referência nazista presente, uma das formas mais eficientes de ser denunciado era por meio das crianças, os Espiões cujo faro para inodortoxia era infalível a ponto os pais temerem aos próprios filhos, recurso que como referência atual, é bastante utilizado na ditadura totalitária da Coréia do Norte.
A espionagem e a delação, aliás, são instituições totalitárias nas narrativas distópicas. Em Não Verás País Nenhum a qualquer momento você pode ser denunciado a um Civiltar, o que nunca será uma boa ideia. A possibilidade e o dever da delação imediata aos guardas do Estado Único em Nós também era uma das garantias do regime. Em termos de vigilância, aliás, é interessante esboçar a relação do romance de Zamyatin com o de Orwell. No primeiro o Estado observa sua população por meio das transparências dos vidros que compunham toda edificação da metrópole, pois nenhum número tinha algo a esconder do Benfeitor. Já em 1984 temos o uso da tecnologia como suporte ao controle totalitário com o uso das teletelas, as quais estavam sempre atentas a qualquer movimentação dos integrantes do Partido. Para além das ferramentas de controle do Grande Irmão há de se levar em conta ainda o permanente estado belicoso de Oceânia fazendo com que sempre houvesse o inimigo do momento [que] sempre representava o mal absoluto e exigia um líder capaz de enfrentá-lo. Entretanto, a principal forma de controle estatal do Grande Irmão será certamente a propriedade da verdade. “Se o Partido era capaz de meter a mão no passado e afirmar que esta ou aquela ocorrência jamais acontecera – sem dúvida isso era mais aterrorizante do que a mera tortura ou a morte”[12] declara o narrador. A lógica presente está num dos lemas do Partido de quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado. Para escapar desse tipo de controle era preciso uma série interminável de vitórias sobre a própria memória como ocorre com o protagonista Winston Smith. Entretanto, o risco disso era o de logo ser vaporizado e ter sua existência simplesmente eliminada de qualquer registro. Sem falar que, escapando disso tudo, ainda seria preciso a qualquer habitante da Oceânia manter preocupação permanente com a Polícia de Ideias, instituição da qual nenhum pensamento-crime passaria despercebido, mesmo que não se houvessem leis com as quais seguir. Somam-se a todos os mecanismos já expostos aqui, as restrições de mobilidade das populações dos Estados ficcionais observados nestes relatos. Em Nós há o controle por meio de cupons de autorização, inclusive os cupons cor-de-rosa com os agendamentos para o Dia Sexual que era também regulado pelo Estado Único. Cupons são também necessários para se locomover na São Paulo apocalíptica de Não Verás País Nenhum e suas ruas abarrotadas de gente e cadáveres. Nesse sistema as fichas para trocar por água eram muito valiosas e sempre serviam para dar- “um jeitinho” dentro do Esquema. Tendo isto em mente, o que podemos observar até agora é que as respectivas obras compartilham a existência de Estados totalitários que mantém por meio de diversas e eficientes formas o controle sobre os indivíduos que fazem parte de sua massa populacional, e que, em última instância, haverá ainda a possibilidade da lobotomia como o desfecho de Nós, sugerindo a prática do controle mesmo que “mecânico” das mentes dos indivíduos; isto porque, acima de tudo, será por meio deste controle total e irrestrito que estas sociedades garantem os seus regimes totalitários e seus líderes e administradores. Entretanto, antes das medidas extremas, para o sucesso do controle estatal, nos romances observados, temos apresentados de forma relevante a:

Propaganda Totalitária

Abandonando momentaneamente o universo das obras ficcionais, observamos que nos governos totalitários que presenciamos em nosso percurso histórico sempre delegaram á propaganda papel relevante aos seus movimentos. Nesse sentido é interessante observar Hannah Arendt quando diz que “a propaganda totalitária cria um mundo fictício capaz de competir com o mundo real”[13] cujo semelhança poderemos observar nas principais distopias aqui destacadas, mesmo àquelas anteriores aos regimes os quais Arendt usou como modelo para seus estudos. O uso intenso da propaganda como ferramenta de controle e estruturação de poder, contudo não é monopólio de Hitler e Stálin, no Brasil, por exemplo, Getúlio Vargas durante o Estado Novo tinha no D.I.P estrutura importante para divulgação dos seus ideais. Na Coréia do Norte, Kim Jong-Il, amante da sétima arte usava o cinema como indústria de propaganda de seu regime totalitário. Neste sentido é então bastante interessante refletir como as narrativas distópicas tratam a propaganda totalitária. Em Admirável Mundo Novo temos os diversos “Escritórios de Propaganda”. É nesses escritórios que se “produziam os três grandes jornais de Londres”, e aqui um detalhe a ser observado, uma propaganda segmentada de modo atingir suas castas hierárquicas de modo objetivo para os interesses do Estado Mundial. Assim, “O Rádio Horário” era destinado às castas superiores, “A Gazeta dos Gamas” com suas “palavras monossilábicas” e “O Espelho dos Deltas” seguiam a mesma ideologia de atender um público destinado. Dentro da estrutura estatal de propaganda na obra de Huxley temos ainda o “Departamento de Cinema Sensível”. A Propaganda também é essencial para o universo de 1984. No romance de Orwell quem cuida deste elemento é o Ministério da Verdade, local onde o próprio Winston trabalha. O tamanho desta estrutura toma proporções grandiosas ao sabermos que “continha três mil salas acima do solo e ramificações abaixo”. Neste gigantesco local “o Ministério da Verdade, responsável por notícias, entretenimento, educação e belas-artes” produzia e retificava toda e qualquer informação de Oceânia. A forma ou a política de trabalho no Ministério da Verdade pode ser exemplificado por uma das tarefas de Winston que vez por outra necessitava retificar artigos do “Times” principal jornal de Oceânia. A retificação dos artigos é procedimento normal “de forma a garantir que a previsão que ele havia feito [o Grande Irmão] estivesse de acordo com o que realmente acontecera”[14]. Assim, a imprensa é totalmente controlada como observamos neste trecho:
depois de efetuadas todas as correções a que determinada edição do Times precisava ser submetida e uma vez procedida inclusão de todas as emendas, a edição era reimpressa, o original destruído e a cópia corrigida era arquivada no lugar da outra. Esse processo de alteração contínua valia não apenas para jornais como também para livros, periódicos, panfletos... (...) enfim todo tipo de literatura ou documentação que pudesse vir a ter algum significado político ou ideológico. (ORWELL, 2013, p.54)
            Vejamos que no caso de 1984 o controle de propaganda e informação não se dá apenas de maneira prévia, mas também posterior que acaba convergindo para os apontamentos de Arendt a respeito do líder totalitário no que diz sobre sua “infalibilidade”. No caso do romance, todo o Ministério da Verdade existe justamente para além da propaganda, ser também a estrutura capaz de demonstrar o Grande Irmão como o líder infalível. Além disso, o órgão ao controlar a propaganda também controla a história de tal modo que a história não passava de um palimpsesto, raspado, reescrito tantas vezes quanto fosse necessário. Entretanto esta função dada ao departamento de documentação não lhe era em primeira instância “reconstruir o passado”, mas sim abastecer os cidadãos de Oceânia com jornais, filmes, livros escolares. É interessante observar que mesmo os “proletas”, não pertencentes à estrutura do Partido, eram abastecidos pela propaganda estatal. Para o entretenimento proletário em geral eram produzidos jornais populares contendo somente esportes, crimes e astrologia, romances sem a menor qualidade, curtos e sensacionalistas etc. Contudo, em termos de propaganda, não é só por meios de jornais, cinema ou televisão se dá a demonstração de força dos poderes totalitários. Atividades de ordem pública geralmente surgem também, como organização das massas em festividades de devoção, aceitação ou agradecimento através eventos públicos. Nesse aspecto temos o Dia de Ford, em Admirável Mundo Novo ou então as Manifestações Espontâneas de 1984. Já em Nós há o Dia da Unanimidade com suas marchas e desfiles ratificando a permanência do Benfeitor no comando do Estado Único.  Enfim, aos Estados totalitários das ficções narrativas do Século XX a propaganda desempenha papel fundamental em suas estruturas, inclusive no representante nacional desta lista, Não Verás País Nenhum em que a propaganda é tratada como IPO (Intensa Propaganda Oficial) que como conta o narrador-protagonista Souza “coloca o que quer em nossas cabeças”. Aliás, sobre a IPO, Souza fala:
sou lúcido para saber que o controle total rígido, dos meios de comunicação, aliado à Intensa Propaganda Oficial, amorteceu nossas mentes. De tal modo que esta emergência em que vivemos passou a ser considerada normal. (BRANDÃO, 2012, p.22)
Vejamos que temos aqui a visão da propaganda a partir de um sujeito “amortecido” por esta mesma propaganda. Mas não é só o amortecimento e o controle que estão nos horizontes da propaganda totalitária das narrativas distópicas. De um modo  mais amplo, esta propaganda tem como objetivo e busca o:

Controle da Verdade


            Podemos observar isto na obra de Ignácio Loyola de Brandão. Escutemos mais uma vez Souza: “não posso esquecer a propaganda oficial, massacrante. A Convincente IPO. Flutua por todos os lados, dissolvida no ar que respiramos. É a nossa verdade hoje”[15]. Vejamos que o protagonista relega à propaganda oficial a posse da verdade, pois é como espelho de parque, deformante, que inverte, gordo-magro, feio-bonito. No caso de Admirável Mundo Novo o controle da verdade se constitui um dos pilares da estabilidade já que se o alcança a partir de processos de condicionamento mental desde a fabricação dos indivíduos como observamos o pensamento de Bernard Marx “Cem repetições, três noites por semana, durante quatro anos... sessenta de duas mil repetições fazem uma verdade. Imbecis!”[16].  Esta luta entre a verdade e a mentira será observada por Hannah Arendt em “As Origens do Totalitarismo” como quando diz que “deve acrescentar-se o terrível fascínio exercido pela possibilidade de que gigantescas mentiras e monstruosas falsidades viessem a transformar-se em fatos incontestes”[17] de modo que a diferença entre a verdade e a mentira pudesse deixar de ser objetiva e passasse a ser apenas uma questão de poder e de esperteza, de pressão e de repetição infinita.  Essa é uma questão premente a um dos principais elementos do regime totalitário em 1984, o lema do Partido a respeito do controle do tempo histórico que em sua natureza alterável de tal modo que tudo que fosse verdade agora fora verdade desde sempre. Na verdade ao defrontar-se com as “verdades” do Grande Irmão, Winston coloca a questão em pauta “e se todos aceitassem a mentira imposta pelo partido – se todos os registros contassem a mesma história -, a mentira tornava-se história e virava verdade”[18].  A respeito desta irelação entre controle do passado [da história], mentiras e verdades, as reflexões de Winston levam a uma contundente observação de que “se o Partido era capaz de meter a mão no passado e afirmar que  esta ou aquela ocorrência jamais acontecera – sem dúvida era mais aterrorizante do que a mera tortura ou a morte”[19]. No caso de 1984, Orwell aprofundará as discussões acerca dos limites das verdades-mentiras num termo em novafala, o duplipensamento, que significa a capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas. A questão do controle da verdade é tão importante para a obra de Orwell que segundo Fromm,
a questão básica levantada por Orwell é se há algo que se possa denominar “verdade”. A realidade, diz o partido dominante, não é externa. A realidade existe na mente humana e em nenhum outro lugar. (...) tudo o que o partido reconhece como verdade é verdade. (FROMM, 2013, pp.374-5)
Portanto, não podemos deixar de observar que de acordo com as narrativas distópicas “o controle da verdade” ou a detenção de seu monopólio é uma característica relevante para o gênero que somado a todos os elementos já descritos aqui, reúnem outra característica comum:

            Ausência do herói

            Não espere encontrar nas narrativas distópicas que demarcaram o nascimento do gênero a figura do herói, infalível, cheios de virtudes e valores intransponíveis que os levarão à vitória. Pelo contrário, são os personagens-protagonistas destas narrativas, construídos próximos às incongruências e inexatidões tão características aos humanos. Distantes de qualquer possibilidade de feitos heroicos os protagonistas das distopias são seres atormentados por temores de toda ordem que tornam-se ideais para catalisar a desesperança presente nas distopias. Além disso, são criaturas frágeis, corruptíveis ou ingênuas que oprimidos pelo controle total, fraquejam, anseiam, e geralmente, erram. Em suas respectivas constituições, seus próprios valores morais são questionáveis, cinzentos, humanos. A ausência de heroísmo é algo que os une, e excluindo-se talvez o bombeiro Guy Montag de Fahrenheit 451, o mais próximo que encontraremos de um herói nas distopias, os demais andam por caminhos complexos e envoltos por névoas. Vejamos o caso do narrador-protagonista D-503 de Nós. Um narrador-protagonista que a partir de suas entradas escritas diariamente revelam um sujeito plenamente atomizado pelo regime totalitário do Estado Único. Em grande parte sua narrativa age de acordo com sua afirmação de que “o instinto da não-liberdade é organicamente inerente ao homem desde os tempos mais remotos”[20], entretanto ao ser envolvido por E-330, um número feminino que contrasta sua ardileza com a própria ingenuidade de D-503, ele, engenheiro construtor do foguete Integral passará então a conviver com fortes embates psicológicos entre suas crenças no Benfeitor e no Estado Único e suas ações estimuladas por sentimentos como amor e gratidão que paulatinamente o transformam num cúmplice de uma grande conspiração. Entretanto, sua ingenuidade diante os movimentos políticos nos quais é envolvido, fazem dele menos um cúmplice e mais um títere manipulado por hábeis titereiros. D-503 age sempre sob o signo da ignorância revelando-lhe carência de astúcia e capacidade de percepção sobre tudo que lhe acontece; Por isso ao salvar O-, grávida supostamente do narrador, e ao enviá-la para o outro lado do Muro Verde, é que ele enfim consegue ter mínima extensão de seus “crimes” perante o Estado Único. E isso lhe atormentará, o encherá de dúvidas e remorsos que não são características de um herói típico. Por fim, suas inquietações e temores pouco importam para seu destino final, subjugado pelo Estado. Também distante de qualquer heroísmo está um dos protagonistas de Admirável Mundo Novo, Bernard Marx. Se por um lado é a partir dele que a utopia começa a ser posta sob discussão, tal questionamento verificar-se-á estava muito mais relacionado às frustrações relacionadas ao fato de durante sua produção terem lhe injetado álcool a mais do que o necessário a sua casta do que a dúvidas filosóficas honestas diante a falsa felicidade ofertada pelo Estado Mundial. Isso se cristalizará depois de Bernard beber do sucesso entre os seus, após levar para a metrópole o Selvagem e tornar-se então uma figura realmente conhecida e admirada. Se antes ele questionava os fundamentos da sociedade, com a popularidade advinda graças a seu hóspede excêntrico as perguntas e as dúvidas desaparecem. Então quando o Selvagem frustra-lhe as expectativas agindo de forma livre, Bernard vê-se novamente mergulhado em desânimo, a embriagues do sucesso tinha se dissipado; voltara sobriamente ao seu velho eu, desta vez derrotado. “Sou infeliz de novo” confessa ao Selvagem e nisso talvez sua única vitória sobre o Estado Mundial. Ao final, sua fraqueza moral o lerá negar seus companheiros, o Selvagem e Helmholtz, denunciando-os ao administrador Mustafá Mond.
Não menos complexo e anti-heroico é Souza, narrador-protagonista de Não Verás País Nenhum. Ainda que consciente e crítico das distorções do Esquema e as correntes a mover a corrupção sistêmica de suas engrenagens, ele simplesmente resiste não resistindo. Seus questionamentos e crítica para com o Esquema dão-se sempre no objetivo de atingir o externo, pois internamente ele é incapaz de não querer. Assim, é mais uma peça, um número do Esquema e mesmo estando na hierarquia mais baixa do regime é também praticante da corrupção sistêmica e generalizada. “Na hora de conseguir umas fichas de água a mais, o Esquema vale, né tio” provoca-lhe o sobrinho. Professor universitário aposentado compulsoriamente Souza é capaz de compreender a sordidez do Estado, entretanto, não será capaz de não beber desta mesma sordidez se necessário à sua sobrevivência. Assim, ele resiste, mas não como um herói arquétipo. O Mesmo ocorre com Winston Smith de 1984, geralmente confundido como “o herói” da obra. Entretanto, ainda que sua grande revolução se dê internamente e secretamente ao iniciar a escrita de seu diário, ele mostra-se falível, ou seja, humano. Vejamos a sua dificuldade de não conseguir manter-se “são” quando das seções dos dois minutos de ódio, inflado pela massa sucumbindo à ira, algo que um herói típico não faria. Tampouco um herói entregaria um terceiro, nesse caso não simplesmente um terceiro, mas alguém com quem Winston mantém uma relação, Julia. Ele o faz; assim como o faz consigo mesmo ao ser subjugado por O’Brien. Ao final ele percebe então:
Olhou para o rosto descomunal. Quarenta anos haviam sido necessários para que ele descobrisse que tipo de sorriso se escondia debaixo do bigode negro. Ah, que mal-entendido cruel e desnecessário! Ah, que obstinado autoexílio do peito amoroso! Duas lágrimas recendendo a gim correram-lhe pela lateral do nariz. Mas estava tudo bem, estava tudo certo, a batalha chegara ao fim. Ele conquistara a vitória sobre si mesmo. Winston amava o Grande Irmão. (ORWELL, 2013, p.346)
            Temos aqui, porém, apenas um resumo, uma demonstração superficial, porém que já demonstra o não heroísmo dos protagonistas das narrativas distópicas. De certa forma o herói não deixa de ser figura impossível nas distopias, pois em grau máximo, a desesperança máxima é garantida pela:

            Supremacia do Estado totalitário

            Se de fato os autores de distopias tinham, mesmo que inconscientemente, o desejo de aviso para o futuro [ou seja, nosso presente] é compreensível que optassem por desenhar o desfecho mais sombrio e soturno possível. No caso isso se demonstra pela supremacia dos Estados totalitários destas narrativas perante seus indivíduos. 1984 encerra-se com a subjugação de Winston Smith diante da descoberta de seu amor pelo Grande Irmão.  O Admirável Mundo Novo sequer é arranhado pelo curto lapso de consciência surgida pelos ruídos nascidos com a presença de Bernard Marx, Helmholtz e o Selvagem, e, ao fim serão os três expulsos e punidos enquanto num trecho muito rápido teremos o acesso a um futuro revelando que a utopia prosseguiu sem qualquer incômodo ou lembranças do trio. Em Nós, o desfecho é também uma demonstração de força e poder obtidos pela repressão e pela violência. Após a atomização dos indivíduos apresentar fraquezas em último recurso a lobotomia forçada restaura “a paz” do Benfeitor. Com isso a terceira drástica mudança na narração de D-503 que passa do adepto total a questionador a novamente adepto, desta vez de forma robótica. Não menos sorte terá Souza que persistirá uma inexistência para o Esquema, sua alternativa única é aguardar a morte sob o grande viaduto, e, ainda que o próprio pronuncie possibilidade de chuvas naquele ambiente árido e sufocante, seu destino é o fracasso absoluto. Mesmo em Fahrenheit 451 que guarda certas peculiaridades em relação aos demais romances distópicos, a revolução de Guy Montag é insuficiente para desestruturar o Estado vigente, assim sua única resistência possível é esconder-se e lembrar.
Enfim, reunimos aqui alguns apontamentos introdutórios às narrativas distópicas que marcaram o século XX, um século banhado pela desesperança em meio a conflitos extremos e que expuseram as vísceras da maldade possível dentre nós, humanos. Desta forma é compreensível que tais narrativas nos conduzam por estes ambientes em que o heroísmo não é possível e que as botas opressivas da ideologia totalitária não descuidam um instante só, de modo que o poder não seja afetado.


[1] Cf SOARES, Angélica, 2007, p.20
[2] Cf FROMM, Erich, 2013, p.369
[3] Pegae ref em Nós
[4] Cf HUXLEY, Aldous, 2016, p.14
[5] Cf HUXLEY, Aldous, 2016, p.43
[6] Cf HUXLEY, Aldous, 2016, p.71
[7] Cf ORWELL, George, 2013, p.12
[8] Cf BRANDÃO, Ignácio de Loyola, 2012, pp.133-4
[9] Cf, BRANDÃO, Ignácio de Loyola, 2012, p.134
[10] Droga produzida e distribuída pelo Estado como política de estabilidade e felicidade
[11] ZAMYATIN, Yevgeny. Ver ref completa
[12] Cf ORWELL, George, 2013, p.47
[13] Cf ARENDT, Hannah, 2008, p.410
[14] Cf ORWELL, George, p.53
[15] Cf BRANDÃO, I. L., 2012, p.93
[16] Cf HUXLEY, Aldous, 2016, p.69
[17] Cf ARENDT, Hannah, 1998, p.383
[18] Cf ORWELL, George, 2013
[19] Cf ORWELL, George, 2013, p.47
[20] Cf ZAMYATIN, I., 1924 

Bibliografia

ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo: São Paulo, 1998.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451: Globo de Bolso. Rio de Janeiro, 2014.
BRANDÃO, Ignácio Loyola. Não Verás País Nenhum: Global Editora, São Paulo, 2012.
BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica: Aleph. São Paulo, 2015.
CASTELO, José. O fracasso dos gêneros. In: _____. A literatura na poltrona. Rio de Janeiro: Record, 2007.
FROMM, Erich. posfácios: in: 1984, de George Orwell. Companhia das Letras: São Paulo, 2009.
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo: Biblioteca Azul, 2016.
KOPP, Rudinei. Literatura e Mídia na Literatura Distópica de Meados do Século XX. PUC: Porto Alegre, 2011.
ORWELL, George, 1984 (13ª Impressão): Companhia das Letras. São Paulo, 2013.
SOARES, Angélica. Gêneros Literários: Editora ática: São Paulo, 2007.

ZAMYATIN, Yevgeny, Nós.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Resumo: Literatura distópica e seu contexto social


Na próxima quinta-feira iniciaremos as atividades do curso "Sob a égide do totalitarismo e autoritarismo: a literatura como reflexão" e para o primeiro encontro, além das apresentações iniciais do projeto, estaremos discutindo o contexto social a que as leituras sugeridas no projeto estão inseridas. Como será de prática ao decorrer das atividades, o resumo abaixo será uma apresentação introdutória inicial paras as reflexões de cada respectivo encontro. 


Literatura distópica e seu contexto social.

por Douglas Eralldo


    No decorrer do curso “sob a égide do totalitarismo e autoritarismo: a literatura como reflexão” teremos como ponto de partida uma seleção de leituras sugeridas que conduzirão nossas reflexões e abordagens. Esta seleção é especialmente composta por obras que ficaram conhecidas como distopias ou, no caso de parte das obras nacionais, narrativas do realismo fantástico, tendo todas elas importantes e relevantes reflexões sobre questões relativas ao poder, mas principalmente a respeito do objetivo principal deste projeto que é refletir sobre o totalitarismo e o autoritarismo.
Como forma de introduzir nossas discussões, estes resumos prévios buscarão apresentar algumas questões iniciais para cada encontro de tal modo que sirvam de suporte às reflexões e estimuladores do debate. Mas antes de penetrarmos numa pequena viagem ao contexto social e histórico e seus reflexos em algumas das obras a serem abordadas aqui, de antemão se poderia levantar um questionamento: por que utilizar a literatura como reflexão? Não desprezando outras ricas contribuições de pensadores, críticos e estudiosos, creio que podemos responder a esta pergunta com o encerramento de Alfredo Bosi no seu texto, Narrativa e Resistência em que de forma bastante poderosa ele afirma:
a narrativa descobre a vida verdadeira, e que esta abraça e transcende a vida real. A literatura, com ser ficção, resiste à mentira. É nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente. (BOSI, 1997, p.27)
Tal definição exprime bem as complexidades da literatura e também seu poder e impacto. Aliás, vale dizer que para estas discussões observaremos os impactos da obra sobre seus contextos sociais e também dos contextos sociais sobre as respectivas obras, o que nos leva imediatamente às observações de Antônio Candido acerca de “literatura e sociedade”, especialmente observando-o quanto à necessidade de fundir texto e contexto de forma que se produza uma interpretação crítica dialética. Além disso, nesse caso vale lembrar conforme o crítico de que “sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.”[1]


Com tais premissas presentes, dediquemo-nos então a um breve olhar acerca de algumas das obras selecionadas, como o caso de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley publicado em 1932. Nesta obra encontramos uma sociedade futurística que especula avanços da ciência como a reprodução humana em laboratório e um controle total através do prazer absoluto e do excesso de informação. Fazendo aqui o alerta da pouca confiabilidade da opinião do próprio autor sobre sua obra, é interessante observar Huxley ao falar sobre a temática de seu romance em um prefácio de 1946  dizendo sobre ele que “não é o avanço da ciência em si; é esse avanço na medida que afeta os seres humanos”[2] o elemento central a ser observado em sua obra. E há nela uma série de especulações científicas de química e engenharia, contudo é o que chama de “ciências da vida” como a biologia, psicologia e fisiologia que impactarão os habitantes ficcionais do romance. Logicamente isto aponta para um tempo de inquietações científicas, entretanto é outro elemento do contexto social que demarcará fortemente sua presença na obra do autor, ainda que o mesmo não comente este ponto de maneira específica. Sobre o processo de escrita, Huxley diz que “nessa época, eu a projetei para daqui a seiscentos anos”[3] porém seus olhos não conseguem fugir de algo presente a seu tempo: a revolução industrial, especialmente a indústria automobilística que impactava o início novo século, principalmente, no caso do livro, os métodos de Henry Ford. Não deixa de ser curioso que será justamente este processo de engenharia de produção o responsável por toda a hierarquia da sociedade distópica de Huxley. O fordismo, aliás, é uma presença marcante em toda a narrativa, tanto que seus anos são marcados como “antes de Ford” e “depois de Ford” elevando Henry Ford a uma divindade produtiva e industrial cuja filosofia comandará todo seu novo “Estado Mundial”. A presença de Ford e seus métodos no livro vão além, compondo inclusive a estrutura narrativa da obra, especialmente seus primeiros capítulos em que o leitor conduzido pela voz em terceira pessoa fará um passeio bastante didático a uma linha de montagem, no romance, entretanto, ao contrário dos calhambeques do velho Henry, o produto final desta linha fabril (com diversas etapas de processos) serão os seres humanos, produzidos em escala controlada e replicados, previamente projetados para ocuparem suas diferentes castas na estrutura do Estado Mundial.
            À altura de sua publicação, Admirável Mundo Novo chega numa terceira década de um século deveras agitado e sob o impacto de grandes mudanças sociais e políticas. Não é o primeiro romance do gênero distópico é bem verdade, o posto em geral é dado ao romance do escritor Russo Yevgeny Zamyatin, Nós, publicado em 1924, fora da Rússia, país que desde 1917 passava por grandes transformações e conflitos a partir da revolução bolchevique. Muitos pesquisadores apontam que tanto Huxley como Orwell foram leitores desta obra. Mas retomando Admirável Mundo Novo, este traz o universo distópico bastante arraigado à busca da utopia, por isso o uso das diversas ferramentas e recursos para a obtenção total da felicidade, e, no campo político, tendo como objeto final a “estabilidade social”, a grande garantidora do poder totalitário. Nesse sentido é curioso observar que a obra de Huxley assim como a de Zamyatin estão inseridas anteriormente ou no início dos dois principais processos totalitários do século, os regimes de Stálin na Rússia, e o que viria a nascer com a chegada de Hitler ao poder na Alemanha em 1933, o nazismo. Desse modo é um tanto natural que o regime de Stálin e o de Hitler considerados os “modelos” de regimes totalitários e que serviram de bases, por exemplo, para os estudos de Hannah Arendt, entre outros pensadores e pesquisadores, venham a ter influência mais direta em obras como 1984, de George Orwell e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Levando isto em consideração vale portanto destacar a antevisão e a capacidade de ambos os autores de por meio na narrativa literária explicitarem tendências sombrias que vieram a ser ratificadas pelo “mundo real”.

Falando em George Orwell, este tornou-se um verdadeiro pregador contra o totalitarismo sendo que 1984 livro escrito durante o ano de 1948 e publicado em 1949 é tido como fruto desta sua jornada, sendo também sua última publicação, inclusive, post mortem. Dentre as distopias 1984 é provavelmente a mais popular do gênero e que tem sido revisitada desde então, voltando a ser o centro de atenções recentemente com o crescimento de movimentos políticos extremistas e o reacender do ultranacionalismo de direita que se espalhou pelo mundo. Além disso, parte da popularidade do romance deve-se também “pelas profecias” do romance a respeito das novas tecnologias e mecanismos de vigilância do Estado. Contudo, nesse caso, seria possível dizer que menos profetas e mais observadores e capazes de descrever tendências são os escritores. Na verdade, no caso do romance que popularizou o termo “o Grande Irmão está de olho em você” a partir da vigilância do Estado por meio das teletelas, aponta para o impacto de um invento recente e que mudaria o modo de vida da sociedade: a televisão, cujas primeiras produções em série se deram nos anos quarenta. Huxley, por exemplo, sem esta informação concentra nos cinemas e seus “blockbusters” alienantes, cheios de aventura e entretenimento como tecnologia visual (e cujo conceito de controle midiático voltará a ser trabalhado em Fahrenheit 451, de 1953 com televisões do tamanho de uma parede e com a programação recheada de inutilidades alienantes) a ser usada como mecanismo de controle. Em ambos os casos os autores apresentam usos menos nobre para as novas tecnologias. Mas deixemo-las e retomemos a questão política presente. 1984 chegou às livrarias americanas em pleno Macarthismo e sua intensa campanha anticomunista, que o alça a sucesso imediato, sendo que ainda hoje o livro é tido muitas vezes como simples oposição ao regime de Stálin. Todavia a respeito desta visão mais restritas é importante observar Fromm:
mas todo aquele que enxergar na descrição de Orwell apenas outra denúncia do stalinismo estará confundindo um elemento essencial da análise de Orwell. Na verdade, ele fala sobre um progresso que também está acontecendo nos países industriais do ocidente, apenas num ritmo mais lento que na Rússia e na China. (FROMM, Erich, 2013, p.373)
Dentre outras coisas, o que Fromm pretende é argumentar que imaginar ou conceber 1984 apenas como uma obra anti-Stálin é bastante restritivo e aponta ainda que Orwell (que inclusive estivera nos campos de batalha contra o regime de Franco) tinha na verdade grandes preocupações com os rumos do próprio socialismo inglês colocando-se num campo à esquerda da própria esquerda. Contudo, não podemos ignorar que ambos regimes totalitários estão fortemente presentes em toda a estruturação da narrativa de Orwell que antes de 1984 também publicara a alegoria A Revolução dos Bichos este sim um crítica mais explícita ao regime soviético. Ainda sobre 1984, é podemos observar que o livro estabelece um forte diálogo com as observações de Hannah Arendt sobre “as origens do totalitarismo”, pois em sua ficção Orwell demonstra de modo prático características como as da propaganda totalitária e da própria infalibilidade do líder totalitário; no romance, por exemplo, o Ministério da Verdade é o órgão de constante alteração da informação de tal modo que o Grande Irmão jamais falhe, sendo o mesmo órgão responsável pela propaganda e que trabalha numa lógica crescente e presente nos tempos atuais que é das “verdades alternativas”.

Também fruto desse pós-guerra, Fahrenheit 451 carrega as influências daqueles dias sombrios, num romance cuja temática central é a queima de livros e apresenta um estado totalitário e intolerante ao conhecimento representado pelos livros. Não devemos ignorar, é bem verdade, que a “queima” de livros não foi um monopólio de Hitler ao longo da história, mas certamente suas fogueiras contribuíram pelo menos em parte para a atividade do bombeiro Guy Montag, cuja função era a de justamente queimar livros. Contudo, o alerta de Bradbury no romance vai além de uma crítica à intolerância cultural dos regimes totalitários e a observarmos a coda escrita para o livro, conflitos à época da própria publicação em 1953, uma sociedade americana dividida em diversos estratos sociais, parece contribuir para as preocupações do autor ao apontar que “existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos”[4] sendo que “o fósforo” trata-se de uma metáfora às diferentes formas de censura e banimento da arte. Na verdade o autor elenca o conjunto de minorias, editores e “autores de literatura insossa” como possíveis portadores destes “fósforos”. Nesse ponto o autor e sua personagem Capitão Beatty assumem a mesma voz, visto que num diálogo com Montag, o primeiro argumenta sobre como “estratos sociais” podem debelarem-se contra os livros, respectivamente contra a arte e a cultura. Essa observação faz-se importante porque a obra atira sobre as massas este desejo pirotécnico como podemos ver na fala do capitão “aí está, Montag. A coisa não veio do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias fizeram a façanha”[5]. Em tempos de opiniões acirradas como hoje, com posições inflamadas à direita e à esquerda, a fala de Beatty ainda faz bastante sentido, especialmente se transportá-la para as relações virtuais. O livro, aliás, passa-se num futuro que poderia ser agora, pois sua narrativa acontece após os anos 1990 e depois de duas vitórias em guerras atômicas, outra preocupação bastante presente na literatura pós-guerra. Até aqui temos um traçado histórico capaz de abrir reflexões acerca do surgimento das distopias, ou antiutopias, como foram sendo chamadas inicialmente. Além disso, leva-nos a perguntarmo-nos, e o Brasil?

Por estas terras o exemplar mais próximo em termos de gênero distópico é Não Verás País Nenhum, de Ignácio Loyola Brandão de 1972. Com sua narrativa árida e putrefata o romance publicado no auge da repressão do regime instaurado no país a partir de 1964 avança um pouco no tempo especulando uma nova possibilidade histórica. Em sua narrativa o termo “entreguista” é levado ao auge com uma nação controlada por multinacionais. Não escapam de seu olhar a corrupção característica ao país que e vez de um “Estado” é o “Esquema” quem controla uma hierarquia de corrupção generalizada num ambiente desolado, sem água e sem recursos naturais capazes de garantir a sobrevivência humana. A obra, por sinal, com isso nos parece mais sombria e aterrorizante justamente porque enquanto acompanhamos a peregrinação e a narrativa de Souza, a incapacidade de qualquer resistência é clara, pois ao ser controlado pelo “Esquema” todos fazem parte deste Estado, ao mesmo tempo que desconhecem seu tamanho e mesmo quem controla este “esquema.” Se noutras obras do gênero você possui um Grande Benfeitor, um administrador mundial ou o Grande Irmão, na obra é o “Esquema”, distante, sem rosto e onipresente que não permite ninguém ultrapassar suas respectivas hierarquias e que mantém o constante clima de combate entre todos. Sobre esta obra vale ainda destacar sua versatilidade no campo dos gêneros porque mesmo reunindo os elementos concernentes às distopias ali está presente também o insólito e o fantástico que caracterizam o período como aponta Silviano Santiago:
houve dois tipos de livros que tiveram êxito durante o período: textos que se filiam ao realismo dito mágico e que, através de um discurso metafórico e de lógica onírica, pretendem, crítica e mascaradamente, dramatizar situações passíveis de censura, e os romances-reportagem, cuja intenção fundamental é a de desficcionalizar o texto literário e com isso influir, com contundência, no processo de revelação do real. (SANTIAGO, 1982, p.72)
Fazem parte deste grupo outras leituras sugeridas para este projeto e que acabam estruturando-se como argumenta Silviano Santiago. Uma delas é Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, que em sua primeira parte ao reconstituir a história de Antares descobre também a própria história e formação social do Brasil em sequências de conflitos e golpes e contragolpes que nos levam a pensar sobre o que aborda João Luis Pereira Ourique em sua análise de O Fígado de Prometeu ao dizer que embora ainda “não totalmente aceita no contexto da crítica brasileira: o de que não houve períodos de exceção no Brasil, mas sim de que toda a história brasileira é um período de exceção, no qual vislumbramos lampejos de democracia.”[6]
Serão, sobretudo, os anos após o fim do Estado Novo e depois com o retorno democrático de Getúlio Vargas ao poder, indo até a chegada do golpe militar de 64 que Érico Veríssimo através de seu olhar fará sua “revelação do real” através do estranho incidente de uma sexta-feira 13 e seus mortos insepultos, que além da greve geral a tratar de um sindicalismo combativo daqueles tempos, a narrativa dialogará com a história. O romance, diga-se, se encerra abruptamente com a impossibilidade de uma criança falar a palavra “liberdade” pichada num muro, demonstrando com eloquência “a verdade mais exigente” daquele período.
O regime militar é também fonte paras as obras do escritor goiano José J. Veiga que também se integram às características do período, A Hora dos Ruminantes e Sombras de Reis Barbudos, que mais uma vez suspeitando do autor, mas sem deixar de ouvi-lo, vejamos o que Veiga disse da relação de suas obras com seus respectivos contextos sociais:
em A hora dos ruminantes, eu pensava que ela ia ser curta. Por isso aquele final otimista. Os ruminantes foram embora, deixaram a sujeira aí, mas a gente limpa. O relógio da igreja, que estava parado há muito tempo, enguiçado, foi consertado, bateu horas, todo mundo se animou. Fui muito criticado por alguns, que me acharam muito otimista. Daí eu fiz uma espécie de continuação em Sombras de reis barbudos, livro no qual a repressão e o esmagamento chegam ao auge. Mas no fim, pensando bem, a ditadura acabou como está em A hora dos ruminantes: saiu pela porta dos fundos, não foi?[7]
Mas não podemos deixar de observar as particularidades de cada uma das duas obras e de que o contexto social nelas é trazido pela alegoria. Em A Hora dos Ruminantes as relações de poder vão insinuando-se enquanto a atmosfera do ambiente extravasa na insólita invasão de cachorros e bois a Manarairema sendo que Amâncio Mendes revela um quadro não só da ficção, mas do contexto externo “aí é que está o seu erro. Você fala como se não tivesse acontecido nada. Direitos? Que direitos! Quem não deve não teme! Tudo isso já morreu.”[8] Já em Sombras de Reis Barbudos o auge desse esmagamento e repressão surge de forma ainda mais particular sendo que o autor não traz nenhum militarismo em sua ficção, mas sim através do poder exercido pela Companhia Taitara de Melhoramentos. Concedendo à iniciativa privada o poder e a repressão, Veiga discorre a meios e modus operandis reconhecíveis aos brasileiros daquela época, como a violência, o enclausuramento, o clima de conflito e espionagem civil numa cidade em que as pessoas são restringidas em sua mobilidade, e, não apenas isso, mas também são censuradas quanto seus próprios pensamentos.
Enfim, a intenção aqui era de delinear um panorama dos contextos a que estão inseridas as obras a serem debatidas durante o projeto, fossem eles históricos ou sociais, de modo que isso possa contribuir para nossa interpretação e abrir caminho para a ampliação dos debates e reflexões, e que ao final do curso façam parte de um todo que nos permita acrescer algo às leituras realizadas e colaborar para uma interpretação crítica capaz de entendê-las melhor, além da construção de uma reflexão que colabore para a análise do nosso presente conturbado.


[1] Cf CANDIDO, 2006, p.13
[2] Cf HUXLEY, Aldous, 2016, p.11
[3] Cf HUXLEY, Aldous, 2016, pp.10-8
[4] Cf BRADBURY, Ray, 2014, p.211
[5] Cf BRADBURY, Ray, 2014, p.75
[6] Cf OURIQUE, J. L. P, 2013.
[7] Cf VEIGA, José J. em entrevista reproduzida no blog Banzeiro Textual
[8] CF VEIGA, José J., 2015, p.74

Bibliografia


ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo: São Paulo, 1998.
BOSI, Alfredo in: Narrativa e Resistência.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451: Globo de Bolso. Rio de Janeiro, 2014.
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Cadeiras Proibidas: Global Editora, São Paulo, 2012.
__________________________. Não Verás País Nenhum: Global Editora, 2012.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: Ouro Sobre Azul. Rio de Janeiro, 2006
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo: Biblioteca Azul, 2016.
OURIQUE, João Luis Pereira. In: Sobre a nossa renovada capacidade de sofrer… Uma leitura d’O fígado de Prometeu, de Antonio Callado.
ORWELL, George, 1984 (13ª Impressão): Companhia das Letras. São Paulo, 2013.
SANTIAGO, Silviano. Repressão e censura no campo das artes na década de 70. In:Vale quanto pesa. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 1982.
VEIGA, J. José. A Hora dos Ruminantes: Companhia das Letras. São Paulo, 2015.
________. Sombras de Reis Barbudos. Companhia das Letras, 2015.
________. Em: Entrevista José J. Veiga, Revista Banzeiro. Disponível em <http://banzeirotextual.blogspot.com.br/2010/03/jose-j-veiga-entrevista.html> Acesso: 25/11/2015.
VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares: Editora Globo. São Paulo, 1998.

ZAMYATIN, Yevgeny. Nós. 1924