terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Teorias e Práticas de Leitura

ARTES & LITERATURA

A Arte – o conceito de arte e seu significado – possui uma importância fundamental para que seja possível entender o que é ser humano. Das várias concepções que tentam definir o humano nenhuma delas é tão relevante para esse entendimento do que a capacidade de produzir arte. O raciocínio não é suficiente, visto que outras espécies também o fazem (mesmo que em um nível instintivo), assim como a linguagem ou até mesmo a organização social. Produzir arte evidencia uma compreensão da finitude, da fragilidade, da inconstância, do envolvimento com algo para além da sobrevivência da espécie, ou seja, uma consciência da historicidade do indivíduo, da construção da própria noção de história e de tempo.
A existência, a vida em sua concepção mais ampla, é marcada pela sobrevivência diária, pelo cotidiano (in)suportável dos acontecimentos e das expectativas em relação ao porvir – quase sempre imediato, quase sempre circunscrito ao passar das horas. Pensar um futuro distante implica algo mais, evidencia um romper com a monotonia da sobrevivência... e a arte proporciona isso. A arte nos coloca em uma relação diferente com o mundo e conosco. Criamos uma consciência do mundo a partir da produção estética e acabamos por substituir o mundo “real” pelas impressões dessa mesma “realidade”. Nesse sentido, mediamos o mundo pela ideologia de pensá-lo diferente, constituindo os outros e a sociedade como visões alternativas. Se essas construções são fundamentalmente humanas e nos constituem como sociedade com todas as suas contradições, precisamos ser capazes de “ler” esse processo, necessitamos aprender a nos relacionar com aquilo que nos define como seres humanos e como sociedade e que ajuda (e em alguns casos define) o nosso pensar. A dor da existência é esse cotidiano consciente, talvez por isso que Nietzsche tenha definido a arte como a mentira que torna a vida suportável. Esse diálogo com a arte evidencia a subjetividade que rompe com o imediatismo e o utilitarismo – necessários para a sobrevivência, mas também comprometedores das potencialidades humanizadoras.
Em razão dessa importância é que propomos uma discussão que envolva a noção de Arte. Mas então por que Arte e Literatura? A Literatura não é Arte? Sim, mas não faremos aqui o percurso de todas as artes, senão mediadas pela linguagem, pela palavra. Nesse sentido, pretendemos pensar as Artes a partir da linguagem literária, articulando a interpenetração que existe no fazer literário com as outras produções estéticas.
É conhecida a divisão das Artes em três momentos históricos: Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna – que se estende até a contemporaneidade. Ainda que possamos imaginar vários momentos históricos, nos ateremos a esses três para articularmos uma reflexão consistente, elaborando digressões quando necessárias e relevantes para pensar o fazer artístico.
Na Antiguidade a definição passava pelas musas: Poesia Épica (Calíope), Poesia Lírica e Música (Euterpe), Poesia Erótica (Érato), Tragédia (Mepomene), Comédia (Tália), Hinos Sagrados e Retórica (Polínia) - todas vindo a compor a primeira definição de Literatura proposta por Aristóteles na Poética -, Dança e Canto Coral (Terpsicore), História (Clio) e Astronomia (Urânia). Percebemos que a mesma musa – Euterpe – simbolizava a Lírica e a Música, artes cuja separação somente foi entendida em sua plenitude a partir do Humanismo (Século XV), bem como a importância da Retórica, associada ao sagrado e à afirmação do verdadeiro, vindo a se complementar com o estudo dos astros, considerado também uma arte. A História, como sinônimo da arte de recordar – memória – se insere como uma forma de arte importante e não apenas como ciência.
A importância da linguagem pode ser observada nas sete Artes Liberais da Idade Média: o Trivium (Gramática, Lógica e Retórica) e  Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia). Somente quando essas etapas eram concluídas é que o indivíduo estaria preparado para a Filosofia e a Teologia. A subordinação das artes a esse processo formativo voltado para a concepção religiosa limitou bastante a própria aceitação do fazer estético, ainda que a Arte não dependa das suas definições e restrições. O que é interessante discutir também é a permanência de um certo privilégio de um aspecto da linguagem – pautado no Trivium – em detrimento do artístico, como se estivessem desconexos – ou devessem permanecer distantes.
Na Idade Moderna/Contemporânea recuperamos a noção de Arte da Antiguidade e acrescentamos a dinâmica das novas tecnologias desde o entendimento de que o Cinema se constitui na Sétima Arte, tanto que o número virou sinônimo dessa produção; mas quais seriam as outras seis? E existem outras além de sete? Não há uma ordem clara sobre as seis artes que antecedem o Cinema, no entanto, podemos pensar com uma certa lógica que a Música pode ser a primeira (ritmo), seguida da Dança (movimento), passando pela Pintura (impressão) e pela quarta arte, a Escultura (permanência), até o Teatro (representação), a quinta arte.
A Literatura é, portanto, a sexta arte e aqui aproveitamos para recuperar uma afirmação de Roland Barthes de que se ocorresse algo que fizesse todas as disciplinas desaparecerem, restando apenas uma, essa deveria ser a Literatura, pois a ela convergem todos os demais saberes e conhecimentos. Essa proposta discorda desse posicionamento, pois a Literatura permeia os saberes (ainda que Barthes não abordasse as artes, podemos pensar nos dois aspectos: o das disciplinas/áreas do conhecimento e do fazer artístico), necessitando dos demais para se constituir como arte e também refletir sobre a cultura.
Dessa forma, sugerimos possibilidades de leitura das artes a partir da Literatura (tanto da produção literária em um processo de leitura comparativa, quanto do emprego da teoria e da crítica literária para embasar o processo reflexivo importante para a formação acadêmica na área dos cursos de Letras), relacionando a palavra como elemento mediador e como basilar de algumas produções. Com isso, podemos pensar o Cinema, por exemplo, a partir do conceito de narratividade, do seu roteiro, e discutir aquilo que o faz diferente da Literatura. Assim como no Cinema e no Teatro percebemos a convergência de várias artes, também traremos exemplos da Ópera e dos Musicais para articularmos leituras e reflexões pertinentes tanto na busca pela compreensão das obras quanto para a formação de sujeitos-leitores.
Além das sete artes mencionadas, também já são aceitas várias outras. Acrescentaremos mais duas artes para a nossa proposta: a Fotografia e a Televisão (agrupadas como sendo a oitava arte) e a Banda desenhada ou Quadrinhos ou Graphic Novel (nona arte). Teremos, assim, oito momentos de discussão que nomeamos como Estações. Essas Estações serão apresentadas em encontros semanais e aprofundadas para aqueles que (de forma voluntária) se identificarem com uma delas visando a elaboração de ensaios para a avaliação final. A Literatura será o expresso que passará por essas Estações. Por ser a sexta arte, a Literatura poderia ser denominada como o Expresso 6 – uma brincadeira que poderia incluir a Rota 66 (evidenciando a geração Beat a partir da obra de Jack Kerouac) ou ainda o número da Besta666 – e o aspecto do grotesco, da feiura e de suas representações na Literatura – há relações do 666 com o www, apontando que a internet seria o momento do Juízo Final... então, bem-vindos a este espaço.
Com isso, o primeiro encontro da disciplina Teorias e Práticas de Leitura será destinado à avaliação e aceitação desta proposta de trabalho. Em caso de aprovação, seguirão oito encontros que tematizarão cada uma das demais artes em relação com o Expresso 6. A partir do décimo encontro serão realizadas articulações a partir das leituras propostas e das convergências com a Literatura – desde os textos literários até as obras de referência – assim como entre as demais artes.
Segue uma lista de obras e indicações de leitura (considerando o termo leitura em sua definição mais ampla) evidenciando as obras que serão abordadas nos encontros e aquelas que se destinam (em razão da limitação do tempo) aos grupos de trabalho para as atividades extra-classe (para essas atividades será disponibilizado um turno de trabalho na mesma semana em que o assunto for abordado):

Primeira Estação - Música:
Encontro principal:
- Patches (Clarence Carter).
- Marvin (Titãs).
- Rock de Galpão I e II (Neto Fagundes e Estado das Coisas).
- Uma outra estação (Legião Urbana).
- Habanera (Ópera Carmen).
- Tres minutos con la realidad (Astor Piazzolla).
- Uma pequena música noturna (Mozart).
- Ode à alegria (Beethoven).
- O Malandro (Chico Buarque).
Metodologia: discussão das obras a partir da palavra, ou seja, das composições (letras das músicas e musicalização de poemas) e também a verbalização a partir desse olhar – dessa leitura – sobre o ritmo e a sonoridade em sua inserção histórica e cultural.
Encontro complementar:
- Audição dos exemplos de músicas disponibilizados no site http://www.concerthotels.com/100-years-of-rock/
- Big Bands (Glenn Miller, Benny Goodman, Tommy Dorsey).
- Jazz (Louis Armstrong, Stan Getz, Duke Ellington, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Chet Baker).
- Blues (B. B. Kimg, Muddy Waters, Bessie Smith, John Lee Hooker).
- Rock’n Roll (Roy Orbison, Bill Haley, Chuck Berry, Litle Richard, Jimi Hendrix, Acústicos e Valvulados, Ira, Titãs, Ultraje a Rigor).
- Disco Music (Jimmy Horne, Sunshine Band, Barry White, Leroy Gomes, Harold Melvin).
- Soul (James Brown, Ray Charles, Marvin Gaye, Sam Cooke).
- Reggae (Bob Marley, Gregory Isaacs, Desmond Dekker, Yellowman).
- MPB (Tom Jobim, Caetano Veloso, Djavan, Milton Nascimento, Lupicínio Rodrigues).
- Música Latinoamericana (Luis Cobos, Raul Quiroga).
[O encontro se constituirá na audição de trechos de músicas e de reflexão sobre a sua composição, historicidade e expressividade.].

Segunda Estação – Dança:
Encontro principal:
- Valsa (Valsa do Imperador – Strauss Jr.).
- Milonga (Milonga de sobre passo – Rafael Koller).
- Chamamé (Km 11 – Constante J. Aquer).
- Tango (A media luz – E. Donato).
- Ballet (O lago dos cisnes  - Tchaikovsky).
- Bolero (Dois pra lá, dois pra cá – João Bosco).
Metodologia: a presença do movimento na literatura. Como a dança é retratada pela Literatura. Alguns exemplos literários da dança como tema e do movimento mediante o ritmo da palavra.
Encontro complementar:
- Oficina de expressão corporal.
- A liberdade do movimento e as limitações do Outro – o reconhecimento da existência/presença da reciprocidade.
- Conhecer/reconhecer outros ritmos/movimentos.

Terceira Estação – Pintura:
Encontro principal:
- Civilização Mineira (Portinari).
- Silêncio (Rian Fontanele).
- Trilogia de obras de Umberto Eco (História da beleza, História da Feiura e A vertigem das listas)
- Comparação entre obras de Monet e Van Gogh
Metodologia: concepção de arte através da pintura. Como a materialização de uma imagem ocorre na narrativa ou na lírica. A questão de uma cena congelada e o olhar do artista e do leitor em movimento.
Encontro complementar:
- Visita ao MALG – Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo.

Quarta Estação – Escultura:
Encontro principal:
- Paradise in progress (Daniel Hourdé)
- Continuidade da discussão a partir das obras de Umberto Eco.
Metodologia: a partir da inserção do texto de Walter Benjamin (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica), recuperar alguns aspectos presentes na Pintura e preparar o terreno para o Cinema, a Fotografia e a Televisão. Retomar as artes plásticas juntamente com a arquitetura para pensar a narrativa moderna com base no ensaio de Anatol Rosenfeld, Reflexões sobre o romance moderno.
Encontro complementar:
- Reflexão sobre a Arte da permanência – a arquitetura e as transformações culturais.
- Olhares sobre as esculturas presentes nos espaços públicos.

Quinta Estação – Teatro:
Encontro principal:
- A revolta da cachaça (Antonio Callado)
- O Boato (João Simões Lopes Neto)
- Seis personagens em busca de um autor (Pirandello)
Metodologia: Diferença entre a representação e o texto – considerações sobre Literatura Dramática. A convergência das demais artes no Teatro. A problemática do narrador e do autor no texto dramático e a permeabilidade dos gêneros literários e artísticos.
Encontro complementar:
- Oficina de Teatro
- Escrita criativa – o texto teatral e a narrativa literária: entrecruzamentos.
- Deus da Carnificina (Yasmina Reza).
- A vida é sonho (pedro Calderón de la Barca).

Sétima Estação – Cinema:
Encontro principal:
- Carmen (Direção: Carlos Saura).
- Cisne Negro (Direção: Darren Aronofsky).
- Ópera do malandro (Direção Ruy Guerra)
Metodologia: discutir a ideia da divisão da autoria, de obra coletiva. Pensar a presença das várias artes em um processo de autorreferência e de metalinguagem. A perspectiva do olhar e da recriação na esteira da adaptação e da reconstrução. A questão da imagem em  movimento que incorpora as demais artes no seu processo narrativo.
Encontro complementar:
- Tempos modernos (Charles Chaplin).
- Deus da carnificina (Direção: Roman Polanski)
- Tempos de paz (Direção: Daniel Filho)
- Batman (trilogia de C. Nolan).
- Birdman (Direção: Alejandro González Iñárritu)

Oitava Estação – Fotografia e Televisão:
Encontro principal:
- Êxodos (Sebastião Salgado) – fotografia.
- Nona noite em novembro (Gottfried Helnwein) – fotografia.
- O tempo e o vento (Direção: Paulo José, Denise Saraceni  Walter Campos) – série para Televisão.
- Breaking Bad (Direção: Vince Gilligan) – série para televisão.
Metodologia: as peculiaridades do ritmo narrativo para o cinema e para a televisão – considerando a audiência via internet. O roteiro e a construção das personagens e seu feedback do público – aceitação/rejeição. A questão do mercado – da Indústria Cultural – e o novo contexto histórico. Reflexão a partir das considerações de Theodor Adorno, Walter Benjamin e Hannah Arendt.
Encontro complementar:
- Fotografia e pintura: o registro do momento e a revitalização do passado.
- Fotografia analógica e digital – experiências do fazer e do sentir.
- Grande sertão: Veredas (Walter Avancini) – série para televisão.
- Gothan (Direção: Danny Cannon) – série para televisão.
- The Good Wife (Ridley e Tony Scott) – série para televisão.

Nona Estação – Graphic Novel:
Encontro principal:
- Batman – Terra Um (Geoff Johns e Gary Frank).
- El Gaucho (Milo Manara e Hugo Pratt).
Metodologia: as imagens em sequência visando contar uma história. As histórias em quadrinhos podem ser percebidas como uma tentativa de criar a ilusão de movimento – vide o sucesso dos filmes baseado em graphic novels na atualidade. Tanto a fotografia quanto o cinema e os quadrinhos se inserem em uma perspectiva desejada (podemos observar a partir do ensaio de Umberto Eco sobre o escudo de Aquiles, em A vertigem da listas). Discutir as várias denominações desse gênero.
Encontro complementar:
- Demolidor – Fim Dos Dias (Brian Bendis e David Mack).
- Antes de Watchmen (vários)

A partir do décimo encontro serão propostas relações visando ampliar as possibilidades de leitura, promovendo aproximações com base nas seguintes obras:
- Ópera:
- Ópera dos três vinténs (Brecht)
- Carmen (Bizet)
- Romance:
- Carmen (Prosper Mérimée)
- Musical:
- Chicago (Direção: Rob Marshall)
- Trilha sonora de filmes
- Vídeos clipes
Another brick in the wall (Pink Floyd)
- Happy (Pharrell Williams)
- Do the evolution (Pearl Jam)
- Express yourself (Madonna)
- Born this way (Lady Gaga) 


- Curtas metragens:
 – Contrabandista (Henrique de Freitas Lima)
 – O dia que Dorival encarou a guarda (Jorge Furtado)

O objetivo é recuperar as leituras até então realizadas em cada Estação e socializar com o grupo as impressões e considerações elaboradas ao logo do semestre.


Claude Monet - Gare Saint Lazare - 1877