Dando sequência às atividades do curso "Sob a égide do totalitarismo e autoritarismo: a literatura como reflexão", neste post nos dedicamos a algumas características das narrativas distópicas. Sobre o curso vocês podem ver seus objetivos aqui, e também conferir o texto-resumo anterior em que discutimos o contexto social a que estas publicações estavam inseridas. Aproveitamos para também convidá-los a ler este material sobre crítica cultural e sociedade que pode colaborar com nossas interpretações,
***
Resumo
As narrativas
distópicas do Século XX: características comuns
Por Douglas
Eralldo
A
esta altura do curso “sob a égide do totalitarismo e autoritarismo:
a literatura como reflexão” já temos uma ideia do contexto social e histórico
no qual uma série de publicações consideradas como distopias foi florescendo ao
longo do Século XX. Sobre isto precisamos levar em consideração toda a extensa
discussão teórica acerca dos gêneros literários que perdura há muitos anos e
nos remete às reflexões de Platão e Aristóteles que já debatiam as
classificações das peças literárias. Hoje em dia a flacidez, e mesmo a
possibilidade do fracasso dos gêneros é uma discussão presente e que deve ser
observada. Dito isso, não custa ler o que diz Angélica Soares:
A teoria dos gêneros é vista como
meio auxiliar que entre outros, nos leva ao conhecimento do literário, mas
nunca deve ser usada para valorização e julgamento da obra. Por outro lado, o
fato de um texto apresentar características dos gêneros, por si só, não nos
leva a localizá-lo na literatura. (SOARES, 2007, p.21)
Além
disso, Soares relembra que “os traços dos gêneros estão em constante
transformação; portanto, no ato de leitura, nos devemos conduzir abertamente
pelas mudanças e não por características fixas”[1] o
que estabelece um diálogo com José Castelo ao dizer que “o Século XX se
encarregou de fracionar e desfigurar os gêneros literários” e demonstrar que
“hoje, já não podemos falar, com a mesma segurança, da tipologia do romance, já
que os limites do romance histórico, o autobiográfico, o picaresco, o de
formação etc., são cada vez mais flácidos”. Portanto, ainda que não nos sejam os
princípios condutores de nossas reflexões e interpretações críticas neste
trabalho, todavia, levaremos em consideração toda a problemática relacionada
aos gêneros literários tomando-os então como auxílio no estabelecimento de um
conjunto de obras a reunir elementos comuns capazes de constituir um gênero,
ou, pelo menos, serem reconhecidos de tal forma, como é o caso das:
Distopias
Nessa perspectiva dos gêneros literários, nos dedicaremos
então à literatura distópica, e conforme observa Kopp:
Foi durante o século 20 que a
literatura distópica se consolidou, tomou corpo, ganhou notoriedade e se firmou
como uma das marcas desse tempo. Houve condições para isso, para a emersão de
uma forma de pensar, imaginar e escrever sobre o futuro como um tempo no qual
as coisas se tornariam piores. (KOPP, 2011, p.10)
Todavia, é preciso levarmos em consideração que o termo
distopia já fora cunhado por John Stuart Mill num discurso no parlamento da
Irlanda em 1868. Ao dizer a expressão, Mill já colocava-a em antítese à utopia,
contraste semelhante que Erich Fromm utiliza em sua leitura de 1984, de George Orwell ao dizer que “as
utopias negativas expressam o sentimento de impotência e desesperança do homem
moderno assim como as utopias antigas expressavam o sentimento de autoconfiança
do homem pós-medieval”[2].
Entretanto, ainda que utopia e distopia coloquem-se então como antítese, não
podemos desprezar os apontamentos de Fromm ao dizer que ambas surgem como
crítica social ao momento a que cada pensamento está inserido.
No
caso das distopias, geralmente os estudos apontam para seu surgimento como
gênero a partir da publicação do romance Nós,
do escritor russo Yevgeny Zamyatin. A obra começou a ser escrita em 1920 e foi
publicada em inglês em 1924. Por causa desta peculiaridade o romance foi chamar
atenção das autoridades soviéticas apenas após os anos 30, o que veio causar
uma série de perseguições ao autor. Entretanto não se poderá pensá-lo [o
romance Nós] como uma crítica ao
Stalinismo, pois como podemos observar, sua publicação dá-se antes da
existência do regime totalitário de Stálin, contudo consegue apresentar “uma
antevisão brilhante dum sistema que quis dar aos homens a felicidade (a
organização) em troca da liberdade”[3].
Considerado então precursor do gênero (e aqui não desprezamos outras
publicações anteriores que já continham o caráter distópico, como comumente
aceito por estudiosos como O Tacão de
Ferro, de Jack London), Nós geralmente
é como uma das primeiras narrativas do gênero distopia, sendo a precursora de
um conjunto de obras que passaram a questionar a utopia e refletir sobre os
regimes totalitários. É o caso dos romances que compõe as leituras sugeridas
para este projeto, como Admirável Mundo
Novo, de Aldous Huxley (1932), 1984,
de George Orwell (1949) e Fahrenheit 451,
de Ray Bradbury (1953). No caso de narrativas brasileiras, destacamos neste
conjunto a obra de Ignácio Loyola de Brandão, Não Verás País Nenhum (1982). É a este conjunto de obras sugeridas
que buscaremos observar no que se aproximam e no que se distanciam.
Cada
uma destas obras propõe diferentes olhares sobre “o distópico”, e, publicadas
em diferentes décadas avançam e se complementam de modo a não escaparem da afiliação
dentro de um mesmo gênero. Vale ainda destacar que não se excluem aqui outras
publicações dentro do gênero, ou semelhantes. Contudo, esta seleção reúne os
principais traços significativos e característicos do gênero e geralmente estão
incluídas pela crítica dentro do cânone das narrativas distópicas. Entrementes
vale ressaltar que as publicações do tipo são vastas, Booker em seus estudos
sobre as distopias apresenta uma ampla relação de obras que considera como
distopias. Mas para efeito destas reflexões, a observação dos elementos
presentes no conjunto referido dar-nos-á um panorama capaz de captar a essência
do texto distópico, ainda que por meio de reflexões iniciais. Dito isto, a
partir de agora pretendemos por meio da leitura dos livros sugeridos para o
respectivo projeto, delinear alguns dos traços relevantes ao que veio ser
conhecido como distopia, a começar por suas respectivas abordagens e olhares
sobre o:
O Estado
Totalitário
Não se ignora aqui os regimes tirânicos, déspotas,
absolutistas etc. que precederam o Século XX, porém como revela Hannah Arendt
em As Origens do Totalitarismo, o estado
totalitário que viemos a ter como referência dá-se com o regime stalinista a
partir de 1927 e com o nazismo de Hitler a partir de 1938. Reforça-se com isso
a capacidade dos autores de antecipar ou apresentar tendências de movimentos
sociais que podem ou não a ser efetivados na “prática real”. É o caso de
Zamyatin e Huxley que apontam para isso antes mesmo da efetivação dos dois
principais Estados totalitários conhecidos em nosso percurso histórico recente.
A existência de um Estado totalitário é, aliás, elemento central a todas as
narrativas distópicas e revelam uma preocupação pertinente e presente na arte.
Atribui-se a uma cruzada [e preocupação] de George Orwell contra o
totalitarismo a escrita de seu último romance, 1984. Aldous Huxley também expressou semelhante preocupação em um
prefácio para seu Admirável Mundo Novo em 1946. Nele, faz a importante
observação de que “não há, por certo, nenhuma razão para que os novos regimes
totalitários se assemelhem com os antigos” ainda assim ele coloca que “é
provável que todos os governos do mundo venham a ser quase que completamente
totalitários”[4]
ao apontar para uma trégua momentânea de reacomodação de forças durante o pós-guerra.
Se esta “previsão” de Huxley até então não veio a se confirmar de forma prática
não podemos negar também que o autoritarismo está presente mesmo nas tidas
“maiores democracias” do mundo e o recente e turbulento momento mundial, com o
ressurgimento de pautas nacionalistas e extremistas, não invalidam as
preocupações do autor, que em sua narrativa nos apresenta um estado totalitário
distinto das referências históricas e de outras publicações do gênero, mas não
menos eficiente que o totalitarismo imposto pela força.
No caso das leituras citadas a existência de um estado
totalitário une-se intrinsecamente, ainda que cada um destes estados totais
possuam suas particularidades. No romance inicial do gênero a presença de um
estado totalitário esta representada pelo Estado
Único. Nesse estado toda e qualquer individualidade humana foi apagada e
não raro o conceito é apresentado com escárnio pelo narrador D-503, que narra a
obra a partir de entradas que se assemelham a um diário. Não temos porém a
consciência plena do tamanho deste estado, contudo a percepção é de tratar-se
de uma gigantesca metrópole onde todos são felizes e trabalham pela
coletividade. Neste Estado em que o indivíduo é negado e a identidade difusa
são todos apenas números, não há nomes ou qualquer identidade individual. A
estrutura contém sua hierarquia cujo cume é a liderança do Benfeitor sempre
reconduzido ao posto no Dia da Unanimidade. Aos números se aplicam uma série de
restrições e limitações, entretanto nenhuma destas, percebidas ou motivos de
queixas pelos indivíduos pertencentes ao Estado
Único; ou seja, a adesão ao estado é plena. Contrastando com as limitações,
há a política da transparência em que ninguém nada esconde do Estado e onde
cada um deve denunciar desvios de conduta. Tais questões permitem a existência
deste Estado Único vigilante, onde
cada um dos números dá sua contribuição racional para o Estado, como o próprio
narrador D-503, um engenheiro construtor de um grande foguete, o Integral. Em
sua narrativa, as entradas de D-503 miram narratários doutros planetas contando
em seu tempo presente “as maravilhas do Estado Único”. Isto, entretanto,
sofrerá seus revezes. Em parte por causa do mundo externo, o que há do outro
lado do muro verde, estrutura que coloca os habitantes do Estado Único de certa forma sob uma redoma.
Segundo
estudiosos da literatura, tanto Orwell quanto Huxley foram leitores de Zamyatin
e no caso de Admirável Mundo Novo a
existência de um estado único é retomada com a ideia do Estado Mundial num mundo divido em diferentes regiões
administrativas. Há na construção deste estado totalitário de Huxley uma grande
proximidade com a obra utópica de Thomas Morus, A Utopia. Assim como na Ilha criada por Utopus, há por parte dos
habitantes de Admirável Mundo Novo a
busca pela felicidade e principalmente a necessidade produtiva de seus
habitantes. No caso do Estado Mundial,
a reprodução humana é controlada e dividida em castas de acordo com a
necessidade funcional do Estado, e mesmo o gosto e a admiração pelas paisagens
e pelas flores são restringidos pela hipnopedia durante a incubação, uma das
etapas da produção humana. Neste Estado regido pela produção em massa e pelos
ideais pressupostos por Henry Ford, o diretor do D.I.C nos lembra que “as
flores do campo e as paisagens advertiu [o diretor], têm um grave defeito: são
gratuitas. O amor não estimula a atividade de nenhuma fábrica”[5].
Eis aí outra característica fundamental do Estado
Mundial de Huxley: a necessidade permanente de consumo. Mas do contrário do
Estado Único de Zamyatin cujo
controle estatal se dá pela repressão, no caso do Estado imaginado por Huxley,
uma das ferramentas de controle é busca pelo prazer constante (e quando esta
busca estivesse em risco haveria ainda o Soma, uma droga capaz de garantir a
felicidade sempre). A eficiência do Estado Mundial de Huxley segue os
princípios da fala do diretor quando dos primeiros capítulos do romance
explicita a filosofia de gestão do Estado: “governar é deliberar, e não atacar.
Governa-se com o cérebro e com as nádegas. Nunca com os punhos”[6].
Este trecho parece-nos convergir para a própria visão de Huxley sobre a
eficiência máxima de um Estado totalitário:
um Estado totalitário
verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes de um Poder Executivo
todo-poderoso e seu exército de administradores controlassem uma população de
escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão.(HUXLEY,
2016, p.14)
Este
é um princípio que acaba regendo todo o Estado de Admirável Mundo Novo cujos pilares básicos são: Comunidade. Identidade. Estabilidade.
Se
por um lado, na obra de Huxley o Estado não limita os prazeres, o contrário
dá-se na Oceânia, o Estado totalitário regido pela figura do Grande Irmão, em 1984. Neste romance o Estado é controlado pelo Partido e vive às
turras com os Estados externos, a Eurásia e a Lestásia, estando em guerra ora
com um, ora com outro, de acordo com as necessidades do Grande Irmão. Estruturado sob a égide da tríade guerra é paz, liberdade é escravidão e
ignorância é força o Estado de 1984
é intensamente vigilante e eleva-se a partir de uma série de restrições humanas
e sob o permanente período de conflitos, o que dá estabilidade ao Estado
totalitário do romance. Assim como os demais Estados totalitários distópicos, o
de 1984 possui sua estrutura
hierarquizada e distribuída entre os integrantes do partido através dos
ministérios, da Verdade, responsável pelas notícias e entretenimento, o do
Amor, responsável por manter a lei e a ordem e o da Pujança, responsável pelas
questões econômicas. Sobre o poder do Estado de 1984, creio que algo nem sempre discutido, mas importante, é a
informação dada à consciência de Winston Smith ao começar escrever seu diário
de que “não que isso fosse ilegal (nada era ilegal, visto que já não existiam
leis)”[7]
mas que justamente por isso ser-lhe-iam possíveis diversas punições. Eis aí uma
demonstração clara do permanente estado de exceção vigente em Oceânia. Aliás, o
alcance do Estado em 1984 é tamanho
que cristaliza a própria noção de pensamento-crime, o que por si só será sempre
um tormento a Winston consciente de sua inodortoxia.
Estes são possivelmente os três Estados totalitários
sempre lembrados na perspectiva do gênero distópico, mas para nossas reflexões
vale também destacar o romance brasileiro de Ignácio Loyola de Brandão, Não Verás País Nenhum que apresenta sua
visão de Estado totalitário, e neste caso não se ausenta das questões e dilemas
essencialmente brasileiros. O Estado totalitário desta distopia nacional nos
parece bastante sensível às questões sociais nossas, especialmente por traduzir
seu Estado numa palavra mais brasileira impossível: Esquema. Como característicos aos esquemas, a hierarquia do Estado
de Brandão é envolta por uma névoa. Não há um rosto para o Esquema, ao mesmo tempo em que todos participam dele – mesmo o
protagonista Souza –. Temos então no Esquema
um sistema tomado pela corrupção sistêmica num país loteado e dividido entre
multinacionais, desértico e árido, onde a ausência de recursos naturais como a
água praticamente impossibilita sobrevivência humana. Aliás, tentar sobreviver
é a única coisa que resta neste Estado em ruínas, mas cujas elites do Esquema permanecem inalcançáveis. A
desolação é tamanha que o protagonista Souza a certa altura comenta “fomos nos
habituando de tal modo que passamos a pactuar com a tragédia, aceitando-a como
cotidiano”[8].
Além disso, outra questão de interessante contraste entre a publicação
brasileira e as demais é que se em Admirável
Mundo Novo e principalmente Nós a
coletividade trabalha para a anulação do indivíduo em Não Verás País Nenhum o protagonista Souza aponta para uma das
razões de força do Esquema: o
individualismo. “Para massificar, ao mesmo tempo que isolaram cada pessoa em
si, tornando-a ferozmente individualista...”[9] de
tal forma que a oposição ao Esquema
jamais acontece porque ou estão todos preocupados com os próprios umbigos ou
tentando sobreviver e resistir à miséria extrema.
Vejamos então que nos exemplos até aqui apresentados há a
presença clara e manifesta de um Estado totalitário, que já não é bem o caso de
Fahrenheit 451. Este por sinal,
aproxima-se mais de outra obra geralmente tida como distopia, Laranja Mecânica, de Anthony Burgess. Em
ambas os protagonistas estão imersos numa ação que não abre ao contexto geral
do Estado a que estão inseridos, mas que, entretanto, o autoritarismo e o
totalitarismo permeiam a estrutura social presente em suas narrativas e agem
diretamente sobre suas personagens. No
caso de Fahrenheit 451 temos
provavelmente os Estados Unidos após os anos 1990 e depois de terem vencido
duas guerras atômicas, e ainda que não tenhamos nele um Estado totalitário
visível, no mínimo podemos dizer que se encaminha para tal. Além disso, esta
diferença com as demais obras facilmente pode explicar-se justamente pela
elasticidade dos gêneros, pois há na obra de Ray Badbury outros elementos que p
aproximam das demais narrativas distopicas, como o que diz respeito ao:
Controle Estatal
Em Fahrenheit 451 temos exemplos de uma série de formas
de controle por parte do Estado. A mais evidente e marcante para a estrutura do
romance é a destruição do conhecimento dada a partir da função dos bombeiros
nesta obra: queimar livros. Esta é a função do protagonista Guy Montag, casado
com Mildred, esta segunda evidencia o sucesso do controle estatal através da
alienação conseguida por meio do entretenimento de massa, pobre de qualquer reflexão.
Mildred assim como a grande parte da sociedade de Fahrenheit 451 permanece absorta diante das televisões instaladas
nas paredes dos lares americanos.
Temos aqui um diálogo forte entre Bradbury e Huxley, pois ambos trazem para as
distopias a reflexão de como as tecnologias podem vir a ser utilizadas pelos
Estados totalitários ou autoritários, que vai além da questão do entretenimento.
No romance de Bradbury isso se amplifica na fuga de Montag, perseguido por um
sabujo mecânico e acompanhado por uma câmera portátil que transmite a ação ao
vivo. A ação espetaculosa, aliás, é um dos recursos dos filmes exibidos nos
Cinemas Sensíveis de Admirável Mundo Novo
cuja tarefa é justamente entreter seus habitantes de modo que os níveis de
felicidade nunca caíam. Todavia o auge do controle do Estado Mundial de Huxley já se dava durante o processo de
fabricação dos seres humanos e as diversas castas necessárias ao Estado. O
condicionamento se dava ainda durante a incubação por meio da hipnopedia,
indução feita através do sono. Entretanto, se uma coisa pode-se dizer do Estado Mundial é que este sempre foi
muito precavido e mesmo com o condicionamento hipnótico, o Estado ainda
mantinha o Colégio de Engenharia Emocional com a função de estudar sempre novas
formas da manutenção da “felicidade”, que em último caso seria garantida pelo
Soma[10].
O controle por condicionamento hipnótico, aliás, voltará a ser discutido pelo
Processo Ludovico em Laranja Mecânica estabelecendo a lavagem cerebral com
forma de controle da violência. Na verdade, o que não faltam às narrativas
distópicas são as múltiplas formas de obtenção do controle por parte dos
Estados totalitários, e sempre de com sucesso. Se em Admirável Mundo Novo sua população ama sua escravidão, o narrador
D-503 de Nós se espanta com os
desejos de liberdade dos povos primitivos a ponto de não compreender tal
irracionalidade como quando diz: “muitas histórias incríveis dos tempos em que
as pessoas viviam num estado livre, isto é, desorganizado, selvagem”[11].
Notemos que no romance, até ser posto diante certos acontecimentos, D-503 é um
adepto do Estado totalmente incapaz de perceber qualquer outra forma política.
Já em 1984 a adesão ao Estado totalitário dá-se pelo contrário, não pelo desejo
e aceitação, mas sim pelo medo e pelas restrições dos desejos, como no caso da
Liga Juvenil Antissexo. Na obra de Orwell o medo inclusive justifica-se diante
os diversos meios de vigilância do Grande
Irmão. O romance já com a referência nazista presente, uma das formas mais
eficientes de ser denunciado era por meio das crianças, os Espiões cujo faro
para inodortoxia era infalível a ponto os pais temerem aos próprios filhos,
recurso que como referência atual, é bastante utilizado na ditadura totalitária
da Coréia do Norte.
A
espionagem e a delação, aliás, são instituições totalitárias nas narrativas
distópicas. Em Não Verás País Nenhum
a qualquer momento você pode ser denunciado a um Civiltar, o que nunca será uma
boa ideia. A possibilidade e o dever da delação imediata aos guardas do Estado Único em Nós também era uma das
garantias do regime. Em termos de vigilância, aliás, é interessante esboçar a
relação do romance de Zamyatin com o de Orwell. No primeiro o Estado observa
sua população por meio das transparências dos vidros que compunham toda edificação
da metrópole, pois nenhum número tinha
algo a esconder do Benfeitor. Já em 1984 temos o uso da tecnologia como
suporte ao controle totalitário com o uso das teletelas, as quais estavam
sempre atentas a qualquer movimentação dos integrantes do Partido. Para além
das ferramentas de controle do Grande
Irmão há de se levar em conta ainda o permanente estado belicoso de Oceânia
fazendo com que sempre houvesse o inimigo
do momento [que] sempre representava o mal absoluto e exigia um líder capaz
de enfrentá-lo. Entretanto, a principal forma de controle estatal do Grande Irmão será certamente a
propriedade da verdade. “Se o Partido era capaz de meter a mão no passado e
afirmar que esta ou aquela ocorrência jamais acontecera – sem dúvida isso era
mais aterrorizante do que a mera tortura ou a morte”[12]
declara o narrador. A lógica presente está num dos lemas do Partido de quem controla o passado controla o futuro;
quem controla o presente controla o passado. Para escapar desse tipo de controle era preciso uma série interminável
de vitórias sobre a própria memória como ocorre com o protagonista Winston
Smith. Entretanto, o risco disso era o de logo ser vaporizado e ter sua
existência simplesmente eliminada de qualquer registro. Sem falar que,
escapando disso tudo, ainda seria preciso a qualquer habitante da Oceânia manter
preocupação permanente com a Polícia de Ideias, instituição da qual nenhum
pensamento-crime passaria despercebido, mesmo que não se houvessem leis com as
quais seguir. Somam-se a todos os mecanismos já expostos aqui, as restrições de
mobilidade das populações dos Estados ficcionais observados nestes relatos. Em Nós há o controle por meio de cupons de
autorização, inclusive os cupons cor-de-rosa com os agendamentos para o Dia
Sexual que era também regulado pelo Estado
Único. Cupons são também necessários para se locomover na São Paulo
apocalíptica de Não Verás País Nenhum
e suas ruas abarrotadas de gente e cadáveres. Nesse sistema as fichas para
trocar por água eram muito valiosas e sempre serviam para dar- “um jeitinho”
dentro do Esquema. Tendo isto em
mente, o que podemos observar até agora é que as respectivas obras compartilham
a existência de Estados totalitários que mantém por meio de diversas e
eficientes formas o controle sobre os indivíduos que fazem parte de sua massa
populacional, e que, em última instância, haverá ainda a possibilidade da
lobotomia como o desfecho de Nós, sugerindo
a prática do controle mesmo que “mecânico” das mentes dos indivíduos; isto porque,
acima de tudo, será por meio deste controle total e irrestrito que estas
sociedades garantem os seus regimes totalitários e seus líderes e
administradores. Entretanto, antes das medidas extremas, para o sucesso do
controle estatal, nos romances observados, temos apresentados de forma
relevante a:
Propaganda Totalitária
Abandonando
momentaneamente o universo das obras ficcionais, observamos que nos governos
totalitários que presenciamos em nosso percurso histórico sempre delegaram á
propaganda papel relevante aos seus movimentos. Nesse sentido é interessante
observar Hannah Arendt quando diz que “a propaganda totalitária cria um mundo
fictício capaz de competir com o mundo real”[13] cujo
semelhança poderemos observar nas principais distopias aqui destacadas, mesmo
àquelas anteriores aos regimes os quais Arendt usou como modelo para seus
estudos. O uso intenso da propaganda como ferramenta de controle e estruturação
de poder, contudo não é monopólio de Hitler e Stálin, no Brasil, por exemplo,
Getúlio Vargas durante o Estado Novo tinha no D.I.P estrutura importante para
divulgação dos seus ideais. Na Coréia do Norte, Kim Jong-Il, amante da sétima
arte usava o cinema como indústria de propaganda de seu regime totalitário. Neste
sentido é então bastante interessante refletir como as narrativas distópicas
tratam a propaganda totalitária. Em Admirável
Mundo Novo temos os diversos “Escritórios de Propaganda”. É nesses
escritórios que se “produziam os três grandes jornais de Londres”, e aqui um
detalhe a ser observado, uma propaganda segmentada de modo atingir suas castas
hierárquicas de modo objetivo para os interesses do Estado Mundial. Assim, “O Rádio Horário” era destinado às castas
superiores, “A Gazeta dos Gamas” com suas “palavras monossilábicas” e “O
Espelho dos Deltas” seguiam a mesma ideologia de atender um público destinado.
Dentro da estrutura estatal de propaganda na obra de Huxley temos ainda o
“Departamento de Cinema Sensível”. A Propaganda também é essencial para o
universo de 1984. No romance de
Orwell quem cuida deste elemento é o Ministério da Verdade, local onde o
próprio Winston trabalha. O tamanho desta estrutura toma proporções grandiosas
ao sabermos que “continha três mil salas acima do solo e ramificações abaixo”.
Neste gigantesco local “o Ministério da Verdade, responsável por notícias,
entretenimento, educação e belas-artes” produzia e retificava toda e qualquer
informação de Oceânia. A forma ou a política de trabalho no Ministério da
Verdade pode ser exemplificado por uma das tarefas de Winston que vez por outra
necessitava retificar artigos do “Times” principal jornal de Oceânia. A
retificação dos artigos é procedimento normal “de forma a garantir que a
previsão que ele havia feito [o Grande Irmão] estivesse de acordo com o que
realmente acontecera”[14].
Assim, a imprensa é totalmente controlada como observamos neste trecho:
depois de efetuadas todas as
correções a que determinada edição do Times precisava ser submetida e uma vez
procedida inclusão de todas as emendas, a edição era reimpressa, o original
destruído e a cópia corrigida era arquivada no lugar da outra. Esse processo de
alteração contínua valia não apenas para jornais como também para livros,
periódicos, panfletos... (...) enfim todo tipo de literatura ou documentação
que pudesse vir a ter algum significado político ou ideológico. (ORWELL, 2013,
p.54)
Vejamos que no caso de 1984 o controle de propaganda e
informação não se dá apenas de maneira prévia, mas também posterior que acaba
convergindo para os apontamentos de Arendt a respeito do líder totalitário no
que diz sobre sua “infalibilidade”. No caso do romance, todo o Ministério da
Verdade existe justamente para além da propaganda, ser também a estrutura capaz
de demonstrar o Grande Irmão como o líder
infalível. Além disso, o órgão ao controlar a propaganda também controla a
história de tal modo que a história não
passava de um palimpsesto, raspado, reescrito tantas vezes quanto fosse
necessário. Entretanto esta função dada ao departamento de documentação não
lhe era em primeira instância “reconstruir o passado”, mas sim abastecer os cidadãos de Oceânia com
jornais, filmes, livros escolares. É interessante observar que mesmo os
“proletas”, não pertencentes à estrutura do Partido, eram abastecidos pela
propaganda estatal. Para o entretenimento proletário em geral eram produzidos jornais populares contendo somente esportes,
crimes e astrologia, romances sem a menor qualidade, curtos e sensacionalistas
etc. Contudo, em termos de propaganda, não é só por meios de jornais,
cinema ou televisão se dá a demonstração de força dos poderes totalitários.
Atividades de ordem pública geralmente surgem também, como organização das
massas em festividades de devoção, aceitação ou agradecimento através eventos
públicos. Nesse aspecto temos o Dia de Ford, em Admirável Mundo Novo ou então as Manifestações Espontâneas de 1984. Já em Nós há o Dia da Unanimidade com suas marchas e desfiles ratificando
a permanência do Benfeitor no comando do Estado
Único. Enfim, aos Estados
totalitários das ficções narrativas do Século XX a propaganda desempenha papel
fundamental em suas estruturas, inclusive no representante nacional desta
lista, Não Verás País Nenhum em que a
propaganda é tratada como IPO (Intensa Propaganda Oficial) que como conta o
narrador-protagonista Souza “coloca o que quer em nossas cabeças”. Aliás, sobre
a IPO, Souza fala:
sou lúcido para saber que o
controle total rígido, dos meios de comunicação, aliado à Intensa Propaganda
Oficial, amorteceu nossas mentes. De tal modo que esta emergência em que
vivemos passou a ser considerada normal. (BRANDÃO, 2012, p.22)
Vejamos
que temos aqui a visão da propaganda a partir de um sujeito “amortecido” por
esta mesma propaganda. Mas não é só o amortecimento e o controle que estão nos
horizontes da propaganda totalitária das narrativas distópicas. De um modo mais amplo, esta propaganda tem como objetivo
e busca o:
Controle da Verdade
Podemos observar isto na obra de Ignácio Loyola de
Brandão. Escutemos mais uma vez Souza: “não posso esquecer a propaganda
oficial, massacrante. A Convincente IPO. Flutua por todos os lados, dissolvida
no ar que respiramos. É a nossa verdade hoje”[15].
Vejamos que o protagonista relega à propaganda oficial a posse da verdade, pois
é como espelho de parque, deformante, que
inverte, gordo-magro, feio-bonito. No caso de Admirável Mundo Novo o controle da verdade se constitui um dos
pilares da estabilidade já que se o alcança a partir de processos de
condicionamento mental desde a fabricação dos indivíduos como observamos o
pensamento de Bernard Marx “Cem repetições, três noites por semana, durante
quatro anos... sessenta de duas mil repetições fazem uma verdade. Imbecis!”[16]. Esta luta entre a verdade e a mentira será
observada por Hannah Arendt em “As Origens do Totalitarismo” como quando diz
que “deve acrescentar-se o terrível fascínio exercido pela possibilidade de que
gigantescas mentiras e monstruosas falsidades viessem a transformar-se em fatos
incontestes”[17]
de modo que a diferença entre a verdade e
a mentira pudesse deixar de ser objetiva e passasse a ser apenas uma questão de
poder e de esperteza, de pressão e de repetição infinita. Essa é uma questão premente a um dos
principais elementos do regime totalitário em 1984, o lema do Partido a respeito do controle do tempo histórico
que em sua natureza alterável de tal modo que tudo que fosse verdade agora fora verdade desde sempre. Na verdade
ao defrontar-se com as “verdades” do Grande Irmão, Winston coloca a questão em
pauta “e se todos aceitassem a mentira imposta pelo partido – se todos os
registros contassem a mesma história -, a mentira tornava-se história e virava
verdade”[18]. A respeito desta irelação entre controle do
passado [da história], mentiras e verdades, as reflexões de Winston levam a uma
contundente observação de que “se o Partido era capaz de meter a mão no passado
e afirmar que esta ou aquela ocorrência
jamais acontecera – sem dúvida era mais aterrorizante do que a mera tortura ou
a morte”[19].
No caso de 1984, Orwell aprofundará
as discussões acerca dos limites das verdades-mentiras num termo em novafala, o
duplipensamento, que significa a
capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e
acreditar em ambas. A questão do controle da verdade é tão importante para
a obra de Orwell que segundo Fromm,
a questão básica levantada por
Orwell é se há algo que se possa denominar “verdade”. A realidade, diz o
partido dominante, não é externa. A realidade existe na mente humana e em
nenhum outro lugar. (...) tudo o que o partido reconhece como verdade é verdade.
(FROMM, 2013, pp.374-5)
Portanto,
não podemos deixar de observar que de acordo com as narrativas distópicas “o
controle da verdade” ou a detenção de seu monopólio é uma característica
relevante para o gênero que somado a todos os elementos já descritos aqui,
reúnem outra característica comum:
Ausência do herói
Não espere encontrar nas narrativas distópicas que
demarcaram o nascimento do gênero a figura do herói, infalível, cheios de
virtudes e valores intransponíveis que os levarão à vitória. Pelo contrário,
são os personagens-protagonistas destas narrativas, construídos próximos às
incongruências e inexatidões tão características aos humanos. Distantes de
qualquer possibilidade de feitos heroicos os protagonistas das distopias são
seres atormentados por temores de toda ordem que tornam-se ideais para
catalisar a desesperança presente nas distopias. Além disso, são criaturas
frágeis, corruptíveis ou ingênuas que oprimidos pelo controle total, fraquejam,
anseiam, e geralmente, erram. Em suas respectivas constituições, seus próprios
valores morais são questionáveis, cinzentos, humanos. A ausência de heroísmo é
algo que os une, e excluindo-se talvez o bombeiro Guy Montag de Fahrenheit 451, o mais próximo que
encontraremos de um herói nas distopias, os demais andam por caminhos complexos
e envoltos por névoas. Vejamos o caso do narrador-protagonista D-503 de Nós. Um narrador-protagonista que a
partir de suas entradas escritas diariamente revelam um sujeito plenamente
atomizado pelo regime totalitário do Estado
Único. Em grande parte sua narrativa age de acordo com sua afirmação de que
“o instinto da não-liberdade é organicamente inerente ao homem desde os tempos
mais remotos”[20],
entretanto ao ser envolvido por E-330, um número feminino que contrasta sua
ardileza com a própria ingenuidade de D-503, ele, engenheiro construtor do
foguete Integral passará então a conviver com fortes embates psicológicos entre
suas crenças no Benfeitor e no Estado Único e suas ações estimuladas por
sentimentos como amor e gratidão que paulatinamente o transformam num cúmplice
de uma grande conspiração. Entretanto, sua ingenuidade diante os movimentos
políticos nos quais é envolvido, fazem dele menos um cúmplice e mais um títere
manipulado por hábeis titereiros. D-503 age sempre sob o signo da ignorância
revelando-lhe carência de astúcia e capacidade de percepção sobre tudo que lhe
acontece; Por isso ao salvar O-, grávida supostamente do narrador, e ao
enviá-la para o outro lado do Muro Verde, é que ele enfim consegue ter mínima
extensão de seus “crimes” perante o Estado
Único. E isso lhe atormentará, o encherá de dúvidas e remorsos que não são
características de um herói típico. Por fim, suas inquietações e temores pouco
importam para seu destino final, subjugado pelo Estado. Também distante de
qualquer heroísmo está um dos protagonistas de Admirável Mundo Novo, Bernard Marx. Se por um lado é a partir dele
que a utopia começa a ser posta sob discussão, tal questionamento
verificar-se-á estava muito mais relacionado às frustrações relacionadas ao
fato de durante sua produção terem lhe injetado álcool a mais do que o
necessário a sua casta do que a dúvidas filosóficas honestas diante a falsa
felicidade ofertada pelo Estado Mundial.
Isso se cristalizará depois de Bernard beber do sucesso entre os seus, após
levar para a metrópole o Selvagem e tornar-se então uma figura realmente
conhecida e admirada. Se antes ele questionava os fundamentos da sociedade, com
a popularidade advinda graças a seu hóspede excêntrico as perguntas e as
dúvidas desaparecem. Então quando o Selvagem frustra-lhe as expectativas agindo
de forma livre, Bernard vê-se novamente mergulhado em desânimo, a embriagues do sucesso tinha se dissipado;
voltara sobriamente ao seu velho eu, desta vez derrotado. “Sou infeliz de
novo” confessa ao Selvagem e nisso talvez sua única vitória sobre o Estado Mundial. Ao final, sua fraqueza
moral o lerá negar seus companheiros, o Selvagem e Helmholtz, denunciando-os ao
administrador Mustafá Mond.
Não
menos complexo e anti-heroico é Souza, narrador-protagonista de Não Verás País Nenhum. Ainda que
consciente e crítico das distorções do Esquema
e as correntes a mover a corrupção sistêmica de suas engrenagens, ele
simplesmente resiste não resistindo. Seus questionamentos e crítica para com o Esquema dão-se sempre no objetivo de
atingir o externo, pois internamente ele é incapaz de não querer. Assim, é mais
uma peça, um número do Esquema e
mesmo estando na hierarquia mais baixa do regime é também praticante da
corrupção sistêmica e generalizada. “Na hora de conseguir umas fichas de água a
mais, o Esquema vale, né tio” provoca-lhe o sobrinho. Professor universitário
aposentado compulsoriamente Souza é capaz de compreender a sordidez do Estado,
entretanto, não será capaz de não beber desta mesma sordidez se necessário à
sua sobrevivência. Assim, ele resiste, mas não como um herói arquétipo. O Mesmo
ocorre com Winston Smith de 1984, geralmente confundido como “o herói” da obra.
Entretanto, ainda que sua grande revolução se dê internamente e secretamente ao
iniciar a escrita de seu diário, ele mostra-se falível, ou seja, humano.
Vejamos a sua dificuldade de não conseguir manter-se “são” quando das seções
dos dois minutos de ódio, inflado pela massa sucumbindo à ira, algo que um
herói típico não faria. Tampouco um herói entregaria um terceiro, nesse caso
não simplesmente um terceiro, mas alguém com quem Winston mantém uma relação,
Julia. Ele o faz; assim como o faz consigo mesmo ao ser subjugado por O’Brien.
Ao final ele percebe então:
Olhou para o rosto descomunal.
Quarenta anos haviam sido necessários para que ele descobrisse que tipo de
sorriso se escondia debaixo do bigode negro. Ah, que mal-entendido cruel e
desnecessário! Ah, que obstinado autoexílio do peito amoroso! Duas lágrimas
recendendo a gim correram-lhe pela lateral do nariz. Mas estava tudo bem,
estava tudo certo, a batalha chegara ao fim. Ele conquistara a vitória sobre si
mesmo. Winston amava o Grande Irmão. (ORWELL, 2013, p.346)
Temos aqui, porém, apenas um resumo, uma demonstração
superficial, porém que já demonstra o não heroísmo dos protagonistas das
narrativas distópicas. De certa forma o herói não deixa de ser figura impossível
nas distopias, pois em grau máximo, a desesperança máxima é garantida pela:
Supremacia do
Estado totalitário
Se de fato os autores de distopias tinham, mesmo que
inconscientemente, o desejo de aviso para o futuro [ou seja, nosso presente] é
compreensível que optassem por desenhar o desfecho mais sombrio e soturno
possível. No caso isso se demonstra pela supremacia dos Estados totalitários
destas narrativas perante seus indivíduos. 1984
encerra-se com a subjugação de Winston Smith diante da descoberta de seu amor
pelo Grande Irmão. O Admirável
Mundo Novo sequer é arranhado pelo curto lapso de consciência surgida pelos
ruídos nascidos com a presença de Bernard Marx, Helmholtz e o Selvagem, e, ao
fim serão os três expulsos e punidos enquanto num trecho muito rápido teremos o
acesso a um futuro revelando que a utopia prosseguiu sem qualquer incômodo ou
lembranças do trio. Em Nós, o
desfecho é também uma demonstração de força e poder obtidos pela repressão e
pela violência. Após a atomização dos indivíduos apresentar fraquezas em último
recurso a lobotomia forçada restaura “a paz” do Benfeitor. Com isso a terceira
drástica mudança na narração de D-503 que passa do adepto total a questionador
a novamente adepto, desta vez de forma robótica. Não menos sorte terá Souza que
persistirá uma inexistência para o Esquema,
sua alternativa única é aguardar a morte sob o grande viaduto, e, ainda que o
próprio pronuncie possibilidade de chuvas naquele ambiente árido e sufocante,
seu destino é o fracasso absoluto. Mesmo em Fahrenheit
451 que guarda certas peculiaridades em relação aos demais romances distópicos,
a revolução de Guy Montag é insuficiente para desestruturar o Estado vigente,
assim sua única resistência possível é esconder-se e lembrar.
Enfim,
reunimos aqui alguns apontamentos introdutórios às narrativas distópicas que
marcaram o século XX, um século banhado pela desesperança em meio a conflitos
extremos e que expuseram as vísceras da maldade possível dentre nós, humanos.
Desta forma é compreensível que tais narrativas nos conduzam por estes
ambientes em que o heroísmo não é possível e que as botas opressivas da
ideologia totalitária não descuidam um instante só, de modo que o poder não seja
afetado.
[1] Cf
SOARES, Angélica, 2007, p.20
[2] Cf
FROMM, Erich, 2013, p.369
[3]
Pegae ref em Nós
[4] Cf HUXLEY, Aldous, 2016, p.14
[5] Cf HUXLEY, Aldous, 2016, p.43
[6] Cf HUXLEY, Aldous, 2016, p.71
[7] Cf ORWELL, George, 2013, p.12
[8] Cf
BRANDÃO, Ignácio de Loyola, 2012, pp.133-4
[9]
Cf, BRANDÃO, Ignácio de Loyola, 2012, p.134
[10]
Droga produzida e distribuída pelo Estado como política de estabilidade e
felicidade
[11] ZAMYATIN, Yevgeny. Ver ref completa
[12] Cf ORWELL, George, 2013, p.47
[13] Cf ARENDT, Hannah, 2008, p.410
[14] Cf ORWELL, George, p.53
[15] Cf
BRANDÃO, I. L., 2012, p.93
[16] Cf HUXLEY, Aldous, 2016, p.69
[17] Cf ARENDT, Hannah, 1998,
p.383
[18] Cf ORWELL, George, 2013
[19] Cf ORWELL, George, 2013, p.47
[20] Cf
ZAMYATIN, I., 1924
Bibliografia
ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo: São Paulo, 1998.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451:
Globo de Bolso. Rio de Janeiro, 2014.
BRANDÃO, Ignácio Loyola. Não Verás País Nenhum: Global
Editora, São Paulo, 2012.
BURGESS, Anthony. Laranja
Mecânica: Aleph. São Paulo, 2015.
CASTELO, José. O
fracasso dos gêneros. In: _____. A literatura na poltrona. Rio de Janeiro:
Record, 2007.
FROMM, Erich.
posfácios: in: 1984, de George
Orwell. Companhia das Letras: São Paulo, 2009.
HUXLEY, Aldous. Admirável
Mundo Novo: Biblioteca Azul, 2016.
KOPP, Rudinei. Literatura e Mídia na Literatura Distópica de
Meados do Século XX. PUC: Porto Alegre, 2011.
ORWELL, George, 1984 (13ª
Impressão): Companhia das Letras. São Paulo, 2013.
SOARES, Angélica. Gêneros Literários: Editora ática: São
Paulo, 2007.
ZAMYATIN, Yevgeny, Nós.
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