segunda-feira, 27 de março de 2017

Sob a égide do autoritarismo e do totalitarismo: a literatura como reflexão


Por Douglas Eralldo



É por certo que não se presta a literatura a simples conceituações, tanto é que estudiosos, ainda hoje, buscam por um conceito que a explique, nunca se chegando a um consenso final e definitivo. Aliás, é provável que este consenso nunca chegue, e, se assim o pensarmos, será bem mais provável que estejamos cometendo um erro do que qualquer outra coisa, pois a literatura está mais para apresentar reflexões e provocações do que propriamente afirmar algo. Contudo, ainda que sem um conceito que a defina por completo, não se nega de modo algum a relação da literatura com a sociedade. Para Compagnon (2009) a literatura “dota o homem moderno de uma visão que o leva para além das restrições da vida cotidiana”. No Brasil é em Antonio Candido (2006) que encontramos olhar mais elaborado acerca desta relação entre a obra literária e a sociedade, sendo que de antemão é importante observar:

a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe do grau de consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte.

    Candido (2004) aponta também para que “assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura”. Ele em seus trabalhos ainda fala do aspecto humanizador da literatura:

o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. (Candido 2004)

    Além disso, Candido ainda nos indica a necessidade de uma interpretação dialética da obra literária observando tanto como a obra influencia o meio, assim como o meio influencia a obra. Dizemos isto nesta breve introdução como forma de apresentar princípios e debates teóricos que nortearão o projeto do qual nos propomos a possibilitar a discussão e a reflexão a partir da literatura sobre poder, totalitarismo e autoritarismo.
    Essa discussão se dará de forma aberta à sociedade e buscará também mobilizar a comunidade acadêmica por meio da realização de um curso de extensão, nascido a partir da necessidade (e possibilidade) de realização do estágio de intervenção comunitária do curso de Letras – Português da Universidade Federal de Pelotas – UFPEL. O respectivo curso a realizar-se durante o semestre 2017/1 será ministrado pelo acadêmico Douglas Eraldo dos Santos sob orientação do Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique contando ainda com apoio e suporte do grupo de pesquisas Ícaro. Para tanto, tendo por ponto de partida um grupo de leituras sugeridas e com o suporte teórico necessário, a intenção é justamente propor reflexões tão prementes ao atual momento histórico por qual passamos em que palavras e conceitos como fascismo, xenofobia, intolerância, racismo dentre outros retornam à pauta social.
    Fazendo o registro talvez óbvio que as reflexões não se encerram no grupo de leituras e interpretações que embasarão as discussões, ao longo do projeto buscar-se-á a partir desta leitura prévia observar e refletir como a literatura tem apresentado e discutido a temática do totalitarismo e do autoritarismo e as demais estruturas de poder. Nesse conjunto de leituras estarão presentes distopias canônicas, algumas que diante destes tempos atuais, para muitos, sombrios, voltam a criar interesse entre os leitores. Mergulharemos no universo controlado de 1984, de George Orwell (1948) com seu duplipensamento, algo que assustadoramente encontra ecos nas notícias “fakes” e nas “verdades alternativas” desta década, sem falarmos ainda da figura do “Grande Irmão” com suas representações contemporâneas. Não poderia faltar também a leitura de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932) em que o controle e a estabilidade dão-se pelo prazer absoluto numa sociedade toda de proveta. Huxley, aliás, num prefácio de 1946, sintetiza muito bem sua própria obra e o tipo de totalitarismo presente:

um estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos de um poder executivo todo-poderoso e seu exército de administradores controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos, porque amariam sua servidão.

    Esta é uma afirmação deveras impactante em tempos de retrocessos de conquistas sociais. Não se deixará de fora ainda a obra que além de refletir sobre os regimes totalitários adentra a participação dos livros (nesse caso, a literatura) como resistência ao poder totalitário. Em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), os livros são queimados porque justamente estão ligados intrinsecamente ao meio social e nele exercem determinada influência de tal modo que Guy Montag, um bombeiro cuja tarefa é queimar livros, representa neste conjunto de leituras talvez a resistência mais firme aos poderes totalitários.



    Todavia a literatura brasileira também marcará forte presença neste projeto, e não nos faltam distopias e ficções nacionais que abordam com grande qualidade e relevância as relações de poder. Há em nossa literatura, inclusive, um momento específico em que o meio influenciou fortemente a arte e de nossos autores surgiram obras dum realismo fantástico pungente em tempos de exceção e restrições da liberdade, o regime militar, após o golpe de 1964. É dessa época grandes publicações como a obra de José J. Veiga, que especialmente em Sombras de Reis Barbudos (1973) torna o leitor e suas personagens prisioneiras de um regime totalitário imposto pela Companhia de Melhoramentos de Taitara. Nesse universo, em determinados momentos invadido pelo insólito, como homens voadores no céu, o que fica é a restrição da liberdade, os labirintos que aprisionam e o intenso clima de denúncias, desconfiança e violência. Tão fantástico quanto os acontecimentos nas pequenas Taitara e Manarairema de Veiga também se dá com os cadáveres insepultos de Incidente de Antares, de Érico Veríssimo (1971), que de certa forma traça um panorama de golpes e contragolpes da história brasileira ao mesmo tempo que discute o autoritarismo e o totalitarismo vigente na sociedade de Antares, que distante do mundo, não está alheia – ou isolada – aos mesmos problemas da nação. Ainda mais extrema, veremos, é a obra de Ignácio Loyola Brandão, uma ficção científica desoladora e estéril capaz de congregar as mais variadas mazelas de nossa sociedade. Em Não Verás País Nenhum, além do regime totalitário, estará também a locupletação de uma sociedade corrupta ao extremo capaz de vender toda nação e desertificar nossa paisagem.
    Estes são alguns exemplos de obras cuja interpretação norteará nossas reflexões ao longo da realização do projeto de ensino “Sob a égide do totalitarismo e autoritarismo: a literatura como reflexão”, e que neste momento gostaríamos de convidar a comunidade acadêmica e em extensão toda a comunidade a participar. Em breve, anunciaremos inscrições e divulgaremos o programa completo, que não se privará de também refletir a partir doutras referências e influências extratextuais. Sintam-se provocados. Estimulados. Este é um momento importante para estas reflexões e que reforçam cada dia mais o papel da literatura enquanto elemento componente e estruturante da sociedade.


Referências Bibliográficas
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4ª ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 2004.
__________________. Literatura e Sociedade: Ouro Sobre Azul. Rio de Janeiro, 2006.

COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

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