Por Douglas Eralldo
É por certo que não se presta a literatura a simples conceituações,
tanto é que estudiosos, ainda hoje, buscam por um conceito que a
explique, nunca se chegando a um consenso final e definitivo. Aliás,
é provável que este consenso nunca chegue, e, se assim o pensarmos,
será bem mais provável que estejamos cometendo um erro do que
qualquer outra coisa, pois a literatura está mais para apresentar
reflexões e provocações do que propriamente afirmar algo. Contudo,
ainda que sem um conceito que a defina por completo, não se nega de
modo algum a relação da literatura com a sociedade. Para Compagnon
(2009) a literatura “dota o homem moderno de uma visão que o leva
para além das restrições da vida cotidiana”. No Brasil é em
Antonio Candido (2006) que encontramos olhar mais elaborado acerca
desta relação entre a obra literária e a sociedade, sendo que de
antemão é importante observar:
a arte é social nos dois
sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na
obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos
um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo,
ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Isto decorre
da própria natureza da obra e independe do grau de consciência que
possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte.
Candido (2004) aponta também para que “assim como não é
possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono,
talvez não haja equilíbrio social sem a literatura”. Ele em seus
trabalhos ainda fala do aspecto humanizador da literatura:
o processo que confirma no
homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da
reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o
próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos
problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade
do mundo e dos seres, o cultivo do humor. (Candido 2004)
Além disso, Candido ainda nos indica a necessidade de uma
interpretação dialética da obra literária observando tanto
como a obra influencia o meio, assim como o meio influencia a obra.
Dizemos isto nesta breve introdução como forma de apresentar
princípios e debates teóricos que nortearão o projeto do qual nos
propomos a possibilitar a discussão e a reflexão a partir da
literatura sobre poder, totalitarismo e autoritarismo.
Essa discussão se dará de forma aberta à sociedade e buscará
também mobilizar a comunidade acadêmica por meio da realização de
um curso de extensão, nascido a partir da necessidade (e
possibilidade) de realização do estágio de intervenção
comunitária do curso de Letras – Português da Universidade
Federal de Pelotas – UFPEL. O respectivo curso a realizar-se
durante o semestre 2017/1 será ministrado pelo acadêmico Douglas
Eraldo dos Santos sob orientação do Prof. Dr. João Luis Pereira
Ourique contando ainda com apoio e suporte do grupo de pesquisas
Ícaro. Para tanto, tendo por ponto de partida um grupo de leituras
sugeridas e com o suporte teórico necessário, a intenção é
justamente propor reflexões tão prementes ao atual momento
histórico por qual passamos em que palavras e conceitos como
fascismo, xenofobia, intolerância, racismo dentre outros retornam à
pauta social.
Fazendo o registro talvez óbvio que as reflexões não se encerram
no grupo de leituras e interpretações que embasarão as discussões,
ao longo do projeto buscar-se-á a partir desta leitura prévia
observar e refletir como a literatura tem apresentado e discutido a
temática do totalitarismo e do autoritarismo e as demais estruturas
de poder. Nesse conjunto de leituras estarão presentes distopias
canônicas, algumas que diante destes tempos atuais, para muitos,
sombrios, voltam a criar interesse entre os leitores. Mergulharemos
no universo controlado de 1984, de George Orwell (1948) com
seu duplipensamento, algo que assustadoramente encontra ecos nas
notícias “fakes” e nas “verdades alternativas” desta década,
sem falarmos ainda da figura do “Grande Irmão” com suas
representações contemporâneas. Não poderia faltar também a
leitura de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932) em
que o controle e a estabilidade dão-se pelo prazer absoluto numa
sociedade toda de proveta. Huxley, aliás, num prefácio de 1946,
sintetiza muito bem sua própria obra e o tipo de totalitarismo
presente:
um estado totalitário
verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos de
um poder executivo todo-poderoso e seu exército de administradores
controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser
coagidos, porque amariam sua servidão.
Esta é uma afirmação deveras impactante em tempos de retrocessos
de conquistas sociais. Não se deixará de fora ainda a obra que além
de refletir sobre os regimes totalitários adentra a participação
dos livros (nesse caso, a literatura) como resistência ao poder
totalitário. Em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), os
livros são queimados porque justamente estão ligados
intrinsecamente ao meio social e nele exercem determinada influência
de tal modo que Guy Montag, um bombeiro cuja tarefa é queimar
livros, representa neste conjunto de leituras talvez a resistência
mais firme aos poderes totalitários.
Todavia a literatura brasileira também marcará forte presença
neste projeto, e não nos faltam distopias e ficções nacionais que
abordam com grande qualidade e relevância as relações de poder. Há
em nossa literatura, inclusive, um momento específico em que o meio
influenciou fortemente a arte e de nossos autores surgiram obras dum
realismo fantástico pungente em tempos de exceção e restrições
da liberdade, o regime militar, após o golpe de 1964. É dessa época
grandes publicações como a obra de José J. Veiga, que
especialmente em Sombras de Reis Barbudos (1973) torna o
leitor e suas personagens prisioneiras de um regime totalitário
imposto pela Companhia de Melhoramentos de Taitara. Nesse universo,
em determinados momentos invadido pelo insólito, como homens
voadores no céu, o que fica é a restrição da liberdade, os
labirintos que aprisionam e o intenso clima de denúncias,
desconfiança e violência. Tão fantástico quanto os acontecimentos
nas pequenas Taitara e Manarairema de Veiga também se dá com os
cadáveres insepultos de Incidente de Antares, de Érico
Veríssimo (1971), que de certa forma traça um panorama de golpes e
contragolpes da história brasileira ao mesmo tempo que discute o
autoritarismo e o totalitarismo vigente na sociedade de Antares, que
distante do mundo, não está alheia – ou isolada – aos mesmos
problemas da nação. Ainda mais extrema, veremos, é a obra de
Ignácio Loyola Brandão, uma ficção científica desoladora e
estéril capaz de congregar as mais variadas mazelas de nossa
sociedade. Em Não Verás País Nenhum, além do regime
totalitário, estará também a locupletação de uma sociedade
corrupta ao extremo capaz de vender toda nação e desertificar nossa
paisagem.
Estes são alguns exemplos de obras cuja interpretação norteará
nossas reflexões ao longo da realização do projeto de ensino “Sob
a égide do totalitarismo e autoritarismo: a literatura como
reflexão”, e que neste momento gostaríamos de convidar a
comunidade acadêmica e em extensão toda a comunidade a participar.
Em breve, anunciaremos inscrições e divulgaremos o programa
completo, que não se privará de também refletir a partir doutras
referências e influências extratextuais. Sintam-se provocados.
Estimulados. Este é um momento importante para estas reflexões e
que reforçam cada dia mais o papel da literatura enquanto elemento
componente e estruturante da sociedade.
Referências Bibliográficas
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários
escritos. 4ª ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro
sobre Azul, 2004.
__________________.
Literatura
e Sociedade: Ouro
Sobre Azul. Rio de Janeiro, 2006.
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2009.
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