segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Violência, literatura e crítica

Nas atividades do projeto Sob a égide do totalitarismo e autoritarismo: a literatura como reflexão discutimos a violência a partir da abordagem literária, com a leitura, dentre outros, dos contos "Uma Vela Para Dario", de Dalton Trevisan e "Passeio Noturno - Parte I", de Rubem Fonseca. Complementemos nossas reflexões com o material abaixo:



Observemos também este recorte de jornal registrado afixado no mural da estação rodoviária do município gaúcho de Encruzilhada do Sul:


***
"Com Theodor Adorno e Walter Benjamin, a reflexão sobre a literatura incorporou uma crítica da violência. Motivados pela indignação com os regimes autoritários e pelo impacto das guerras, os autores elaboraram reflexões estéticas pautadas pela necessidade de enfrentamento dos fundamentos filosóficos e sociais da violência de seu tempo". (GINSBURG, 2010, p.73-74)

“era como se esses autores afirmassem que a realidade social é violenta e autodestrutiva em conseqüência de uma violência maior do próprio sistema”. (SCHOLLHAMMER, 2000, p.244)

"Poder-se-ia afirmar que a tendência brutalista na literatura brasileira se apoia na temática da violência sem nenhuma intenção de legitimar a crua realidade dos submundos urbanos. Ao contrário, percebemos como esta narrativa, ao representar uma realidade inaceitável do ponto de vista ético ou político, abre um diálogo com seu conteúdo desarticulado, permitindo assim enxergar uma procura de comunicação abafada culturalmente". (SCHOLLHAMMER, 2000, p. 256). 

"Essa violência é particularmente intensa e sistemática nos períodos caracterizados como regimes autoritários, o Estado Novo e a Ditadura Militar, nos quais seu exercício foi metódico e planejado, mas não se restringe a eles, perpassando no país, ao longo de todo o período que Eric Hobsbawm chamou de era dos extremos". (GINZBURG, 2010, p.98)


segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Inscrições para Curso sob a égide do totalitarismo e autoritarismo: a literatura como reflexão (II)



Estão abertas as inscrições para o curso de extensão Sob a égide do totalitarismo e do autoritarismo: a literatura como reflexão. A atividade conta com apoio do Grupo de Pesquisa Ícaro e está ligado à CAEXT.  As atividades do curso serão realizadas nos meses de outubro e novembro às quartas-feiras pela manhã no Casarão 8 - Museu do Doce.

Numa perspectiva de literatura e sociedade (Candido, 2006) e narrativa e resistência (Bosi, 1997), dentre outras fundamentações teóricas, e tendo enfoque nesta edição a literatura brasileira, o curso irá propor uma reflexão sobre o autoritarismo a partir de leituras de livros nacionais pós 1964. Entre os romances de leitura sugerida e que serão discutidos ao longo das atividades estão Sombras de Reis Barbudos, de J. J. Veiga (1972), Incidente em Antares, de Érico Veríssimo (1971), Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão (1981), Delacroix Escapa das Chamas, de Edson Aran (2009), Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca (1975) e Esta Terra Selvagem, de Isabel Moustakas (2016). Nesta perspectiva discutiremos o romance pós 1964 e o gênero fantástico, o distopismo na literatura brasileira e o espaço urbano como território de violência e opressão. 

Para realizar a sua inscrição basta preencher o formulário abaixo. Maiores informações podem ser obtidas pelo e-mail: literaturaepoder@gmail.com. Além disso, vocês podem acessar posts anteriores deste blog em que temos textos e discussões da primeira edição do curso. 


segunda-feira, 24 de julho de 2017

“Queimem os livros!” bradam os pensamentos totalitários e autoritários.


Por Douglas Eralldo

Scherer nos propõe um exercício de visualização: “imagine 20 mil livros, entre eles grandes obras de Thomas Mann, Walter Benjamin, Bertold Brecht, Alfred Kerr, Sigmund Freud, Albert Einstein, Karl Marx e outros escritores importantes, todos alimentando uma grande fogueira em praça pública com 70 mil pessoas assistindo orgulhosas”. Ela faz esta “proposta” ao relembrar uma viagem a Berlin e ao ligar seu presente aos locais marcados pelo passado quando aproveita para recordar o ato ocorrido em 1933 que ficou conhecido como “a grande queima de livros” feita pelos nazistas com a chegada de Hitler ao poder. Não podemos negar que as imagens fortes e registradas pela história destas grandes piras feitas de livros marcam fortemente o romance Fahrenheit 451, de Ray Brabury, obra na qual o autor trata do tema através de seu protagonista Guy Montag, um bombeiro cuja atividade e função é a de queimar livros, pois no regime autoritário criado por Bradbury, os livros foram proibidos. Mas não podemos creditar a “preocupação” do autor tão somente as lembranças nazistas, pois há em seu contexto histórico uma forte perseguição à intelectualidade e à cultura em geral em pleno macarthismo, período complicado para a liberdade de expressão nos Estados Unidos. Contudo, antes de olharmos mais para o romance de Bradbury, e também para as demais obras do conjunto de leituras sugeridas para este curso de extensão, é preciso antes, porém, observar que as “fogueiras com livros” não são exclusividades nazistas ou da ficção de Bradbury, e sucintamente recordando, infelizmente este é um ato que tem acompanhado e feito parte da barbárie humana. Um dos exemplos históricos que foi pincelado com tonalidades míticas foi a famosa destruição da Biblioteca de Alexandria cuja distinção entre mito e fato divide alguns historiadores, que entre a monumental queima e a degradação gradual por falta de investimentos reforçam a posição de Bradbury de que “há várias formas de se queimarem livros”. Se há algum consenso entre ideologias autoritárias e totalitárias, aliás, este é provavelmente o desejo de queimar livros, ou seja, o desejo de queimar o conhecimento “do outro”, revelando uma grande dificuldade de tolerância ao pensamento diferente ou divergente. Assim, em nosso percurso histórico “livros” foram queimados em diversas partes do globo terrestre, e por diversas culturas, fosse na Dinastia Chin, fosse por faraós, durante a inquisição católica, ou mais recentemente com uma diversidade de exemplos que vão das fogueiras do Estado Islâmico à ojeriza dos leitores de Trump com J. K. Rowling.

Em 1933 com a ascensão do nazismo fogueiras com livros se espalharam por toda a Alemanha

Por conseguinte não pensemos que esta seja uma prática distante do Brasil. Já observamos até aqui nossa formação histórica e social sob o jugo de ideais autoritários que marcam a identidade complexa do país com um passado que a despeito das aparências é marcado pela violência. Assim, por aqui, os livros também tiveram seus momentos de maior ou menor perseguição. Como lembra Reimão (2011) “no governo ditatorial de Getulio Vargas, conhecido como Estado Novo (1937-1945), livros foram apreendidos inúmeras vezes em livrarias, depósitos de editoras e até mesmo em bibliotecas, além de serem incinerados”. Conforme a autora “essas destruições eram frequentes e aconteciam arbitrariamente, à mando de qualquer pessoa que se julgava em posição de autoridade”. Durante este período autores como Raquel de Queirós, Jorge Amado, Monteiro Lobato e mesmo autores considerados moderados, como Gilberto Freire foram perseguidos ou presos, em geral denunciados como antinacionalistas ou comunistas. Gaspari (2002) lembrará também do ex-ministro da educação Flávio Suplicy de Lacerda que “que organizou pessoalmente o expurgo de bibliotecas, queimou livros de Eça de Queirós, Sartre, Graciliano Ramos, Guerra Junqueiro, Jorge Amado, Paulo freire, Darcy Ribeiro”; A ditadura militar, aliás – ainda que nem sempre lembrada por este aspecto – especialmente após o AI-5 em 1968 não poupou os livros de sua censura, e, ainda que com dados divergentes, durante a vigência do Ato Institucional que restringiu liberdades civis e políticas sabe-se de que mais de duas centenas de obras foram censuradas e outras quase cinco centenas foram “avaliadas” pelo regime, que diante da dificuldade de execução da fiscalização e repressão, conforme Reimão baseia seu estudo sobre a censura aos livros durante o período, aponta que a maior parte das obras analisadas pelo Serviço de Censura de Diversões Pública – SCDP ocorria por meio de denúncias de qualquer pessoa que se sentisse prejudicada por este ou por aquele livro, normalmente acusados do subjetivo crime de atentar “contra a moral e os bons costumes”. No caso da ditadura militar a censura foi institucionalizada e regulamentada pelo Decreto-Lei 1077/70.

No Brasil, durante o Estado Novo livros também foram queimados

Portanto, diante destas perspectivas históricas a abordagem da queima e da censura aos livros em obras como as pertencentes ao grupo sugerido para estas atividades é necessária. Deste modo, ainda que Fahrenheit 451 trate do tema de forma específica, as demais narrativas distópicas abordadas ao longo das discussões deste curso também retratarão o tratamento dado aos livros pelos regimes totalitários e autoritários. No Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley os livros também são proibidos e apenas as castas mais altas da hierarquia administrativa do Estado Mundial têm acesso a eles. Todavia, no romance, a literatura, aliás, será apresentada como elemento “libertador” na medida em que a oposição à utopia totalitária presente se dará através do Selvagem John e suas leituras de Shakespeare. Em 1984, de George Orwell os livros também são proibidos, mas vale lembrar que o regime do Grande Irmão não desconsidera o papel da “literatura de entretenimento” ao ter em seu Ministério da Verdade um departamento que dentre outras coisas era responsável por produzir “romances sem a menor qualidade, curtos e sensacionalistas” de modo a retroalimentar a alienação dos proletários, e aqui, certamente poderíamos abrir as portas para o pensamento sobre os compromissos e os objetivos do autor. No cenário apocalíptico de Não Verás País Nenhum, os livros e a intelligentsia também não tiveram vida fácil: “esquecem a tradição oral, proibiram os livros, cassaram os cientistas, expulsaram os professores, prenderam os pensadores” dirá Souza, dando exemplos de mecanismos presentes em modelos autoritários e totalitários. Vejamos então que se Fahrenheit 451 existe em função da queima de livros, as demais distopias do mesmo modo nos alertam para os sinais de tempos perigosos que podem representar quando nos deparamos com fogueiras feitas de narrativas. E já que falamos da obra de Ray Bradbury, uma olhada mesmo que rápida na obra é interessante para nossas reflexões.
Publicado em 1953, Fahrenheit 451 narra a história de Guy Montag, um agente estatal de um estado autoritário cuja função dos bombeiros é justamente a de “queimar livros”. Mas aqui podemos fazer um lembrete do próprio Ray Bradbury de que “existem muitas maneiras de se queimar um livro” de tal modo que o fogo se torna algo simbólico e não destituído de toda violência que pode emanar das chamas. Em sua jornada, Montag, de um bombeiro convicto passará a um pária do Estado, perseguido e criminoso pelo fato de render-se aos livros. Há em sua mudança dois fatores essenciais, o primeiro, o contato com a jovem [e revolucionária] Clarisse que acaba desaparecendo e em segundo, especialmente seu testemunhar de um incêndio em que a proprietária preferiu a perecer nas chamas do que abandonar seus livros. Incrédulo Montag dirá a sua esposa “você não estava lá. Você não viu. (...) deve haver alguma coisa nos livros, alguma coisa que não podemos imaginar...” Tais experiências é que levarão a Montag gradualmente ceder a sua resistência aos livros e romper com a doutrinação estatal e da corporação, de modo é que já dando mostras desse “titubeio” que se construirá o diálogo com o Capitão Beatty, momento quando como leitores seremos informados dos processos que levaram àquele Estado autoritário e intolerante aos livros:

(...) agora tomemos as minorias de nossa civilização, certo? Quanto maior a população, mais minorias. Não pise nos amigos dos cães, nos amigos dos gatos, dos médicos, advogados, patrões etc. (...) quanto maior o seu mercado, menos você controla a controvérsia! Todas as menores das menores minorias querem ver seus próprios umbigos, bem limpos. (...) cada editor estúpido que se considera fonte de toda literatura, lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro (...) não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha. (Bradbury: 2014)

Aqui precisamos colocar alguns pontos de reflexão. Bradbury certamente alerta para o drama da censura aos livros, contudo, como podemos ver ele acaba colocando um bocado de peso sob as costas das minorias, negligenciando, porém, como já pudemos conferir em nosso processo histórico que as “maiorias” também muitas vezes atuam de forma censuradora e perversa, tendo elas, inclusive, um ferramental de maior poder e alcance que em muitos casos sequer precisa “queimar” livros, eliminando-os ainda no nascedouro. Todavia, como lembra Bradbury sempre há quem  “acha e que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar a querosene e acender o pavio”, e independentemente se minoria ou maioria, encontraremos exemplos na literatura ou na vida real de ataques contra os livros, como no exemplo da matéria circulada na Revista Veja em 1976 tratando da censura de livros pelo Regime Militar e da forma como se dava o processo:

Alguém que tenha lido um livro, autoridade ou não, e o considere atentatório à moral ou mesmo subversivo, faz uma denúncia ao Ministério. Instala-se, então, um processo no qual é dada a um assessor do ministro da Justiça a tarefa de ler a publicação e emitir parecer. Com base neste, o ministro decreta ou não a apreensão. (Veja: 1976)

.  Feita esta comparação, e, contudo, mesmo que com pontos discutíveis, retomando a discussão proposta por Bradbury, tais exemplos são importantes porque o autor irá repetir ou retomar tais posições em artigos e posfácios da obra, e cujas opiniões debaterão justamente sua posição como autor:

Todos vocês, juízes, voltem para as arquibancadas. Árbitros, para os chuveiros. A Partida é minha. Eu arremesso, eu rebato, eu apanho. Eu corro as bases. No poente, ganhei ou perdi. No nascente saio novamente, fazendo a velha tentativa. (Bradbury: 2014)

À posição veemente de Bradbury podemos trazer para a reflexão o contraponto sobre a posição do “autor como produtor” trabalhada em uma conferência por Walter Benjamin, que principia o debate colocando em discussão a existência do poeta:

(...) a questão vos é mais ou menos familiar sob a forma da autonomia do autor: sua liberdade de escrever o que quiser. Em vossa opinião, a situação social contemporânea o força a decidir a favor de que causa colocará sua atividade. O escritor burguês, que produz obras destinadas à diversão, não reconhece essa alternativa. Vós lhe demonstrais que, sem o admitir, ele trabalha a serviço de certos interesses de classe. O escritor progressista conhece essa alternativa. Sua decisão se dá no campo da luta de classes, na qual se coloca do lado do proletariado. É o fim da sua autonomia. (Benjamin: 1934)

A partir desta distinção Benjamin problematizará a questão do escritor progressista diante do obedecer a uma tendência e a observação de que “uma obra caracterizada pela tendência justa deve ter necessariamente todas as outras qualidades”. Em síntese, em sua conferência Benjamin buscará ir além da esterilidade dos debates entre exigir que o autor siga a tendência correta e a exigência de uma produção de boa qualidade. Em sua reflexão Benjamin lembra que “a tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contra-revolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de convicções, e não na qualidade de produtor” de forma que “abastecer um aparelho um aparelho produtivo sem ao mesmo tempo modificá-lo, na medida do possível, seria um procedimento altamente questionável mesmo que os materiais fornecidos tivessem uma aparência revolucionária” numa lembrança que deve-se ter o cuidado exatamente para não simplesmente extrair da situação política apenas novos efeitos para entreter o público, de modo que para ele o caráter modelar da produção que “em primeiro lugar, ela deve orientar outros produtores em sua produção, e em segundo lugar, precisa colocar à disposição deles uma aparelho mais perfeito”. Ao fim de suas observações, o autor próximo de sua conclusão irá dizer que “só se imponham ao escritor uma exigência, que é a reflexão”.
Reflexão parece-nos de fato uma palavra (e escolha) bastante sentata e necessária, entretanto nem sempre em voga. Mas seguindo em frente e levando tais pressupostos em consideração e partindo dessa exigência de reflexão chegamos a este ponto trazendo para o debate o olhar de Antonio Candido ao falar sobre a literatura:

A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo a proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. (Candido: 2011)

A natureza dialética da literatura será um dos elementos que o autor utilizará em sua argumentação relacionando esta aos direitos humanos, instituindo “a literatura como um direito inalienável” dos seres humanos e “um bem incompressível”, ao qual não podemos estabelecer um valor monetário. Nesta argumentação, Candido ainda nos lembrará de que “é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita” de modo que depreendemos de uma afirmação desta a necessidade de afastamento de qualquer desejo de censura, seja ele qual for que seja. Ademais, isto posto, não custa lembrar o alerta de Robert Netz de que “a censura é o lugar de uma ilusão perigosa, exatamente aquela em que se fundam as ditaduras e as utopias”.
Assim, exposto este panorama breve, podemos principiar algumas reflexões acerca do instrumento de censura às obras literárias, funcionamento e procedimentos, além de questões transversais que passarão também pela posição do autor e suas escolhas como produtor, bem como a discussão de uma literatura como direito essencial ao ser humano, fato que ao concordarmos implica em oposição imediata a qualquer forma de censura e atenção a pessoas “com fósforos nas mãos e dispostas a acendê-los”. Todavia esta é uma discussão e um debate a ser feito sob as mais distintas e possíveis problematizações numa intrincada e complexa relação que envolve autores, leitores e suas respectivas esferas de poder, bastando que uma delas fraqueje (ou forceje deliberadamente) para que o corpo de bombeiros de Guy Montag torne-se possível.


Bibliografia
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. 1934.
BOSI, Alfredo. Narrativa e Resistência.
BRADBURY, Fahrenheit 451, Globo de Bolso, Rio de Janeiro, 2014.
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Não Verás País Nenhum: Global Editora, 2012.
CANDIDO, Antônio. O Direito à literatura in___ Vários Escritos: Ouro Sobre Azul. Rio de Janeiro, 2011.
GALILEU, Revista: in: A Biblioteca de Alexandria acabou por falta de verba, dizem historiadores. <link: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI343729-17770,00-BLIOTECA+DE+ALEXANDRIA+ACABOU+POR+FALTA+DE+VERBA+DIZEM+HISTORIADORES.html>
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo: Biblioteca Azul, 2016.
LITERÁRIAS, Listas Blog. 10 lamentáveis queimas de livros: < link: http://www.listasliterarias.com/2014/02/10-lamentaveis-queima-de-livros-na.html>
ORWELL, George, 1984 (13ª Impressão): Companhia das Letras. São Paulo, 2013
REIMÃO, Sandra. Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar: USP, São Paulo, 2011.

SCHERER, Fernanda. In: A grande queima de livros. Blog L&pm <link: http://www.lpm-blog.com.br/?p=21675>

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Resumos: Entre bois, muros e mortos insepultos: três narrativas da geração da repressão.


Por Douglas Eralldo

A esta altura do curso Sob a égide do totalitarismo eautoritarismo: a literatura como reflexão  já passamos pela leitura, reflexões e interpretações de uma série de narrativas distópicas que dentre outras coisas, nos propiciaram olhares para os regimes totalitários, seu funcionamento, características, opressão e violência presentes em tais formas políticas em que o controle é total sobre o indivíduo. Para tanto, observamos um conjunto de leituras clássicas do gênero, em sua maioria romances estrangeiros, cabendo a Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão a obra nacional dentre as distopias analisadas. Agora, nesta etapa do projeto de extensão, nossos olhares estarão centrados na produção literária brasileira. Para isso, somando-se ao já citado romance de Loyola Brandão (cujos contos O Homem Com o Furo na Mão e Cadeiras Proibidas também foram trabalhados durante os encontros) incluiremos em nossas leituras e interpretações os romances A Hora dos Ruminantes e Sombras de Reis Barbudos, de José J. Veiga e Incidente em Antares, de Érico Veríssimo. Contudo, antes de nos dedicarmos a estas obras, faz-se importante observarmos alguns elementos de abordagem sobre autoritarismo e literatura brasileira.
Pensar literatura e autoritarismo no Brasil, nos leva de imediato a observarmos o trabalho de Jaime Ginzburg em que o autor reflete sobre Autoritarismo e Literatura: A História Como Trauma. Nesta sua produção o autor declara:

Alguns dos maiores escritores brasileiros se dedicaram a lidar com temas referentes a experiências de autoritarismo, violência e opressão. E alguns dentre eles abdicaram da perspectiva realista, que faz supor, conforme Ian Watt, uma capacidade de compreensão do objeto representado, em parâmetros documentais e ou racionais. Em vez dela, procuraram tensionar o limite entre realidade e imaginação, subverter parâmetros tradicionais, apontar ambivalências da linguagem, pautar a representação em contradições, romper, enfim, com os padrões tradicionais de entendimento e consciência da linguagem. (Ginzburg.p.50)

            Nessa perspectiva, o autor ainda observa e lembra-nos de que :

A crise do sujeito no Brasil, não se dá nas mesmas condições nem pelas mesmas razões que se dá em países europeus. A constituição do sujeito, contextualizada na formação social brasileira, é abalada desde suas bases pelo polo violento e destrutivo em que se desenvolve. (Ginzburg. p.45) 

Para construir seu pensamento acerca do trauma, literatura e história, Jaime Ginzburg – e nós aqui também – terá em conta a permanente presença do processo autoritário e da violência na formação social brasileira, que também nos é afirmada por Segatto:

Há um certo consenso na historiografia segundo o qual o processo histórico brasileiro caracterizou-se por ter sido marcadamente excludente e autoritário. (...) O Estado no Brasil, independente das formas e composições que assumiu nos diferentes momentos e períodos (Monarquia e República; imperial, oligárquico, corporativo, ditatorial, etc.) tem ao longo da história uma características essencial comum: de se impor autoritariamente sobre a sociedade civil. (...) A classe dominante sempre procurou rearticular e reorganizar as formas de dominação política e acumulação de capital para fazer frente aos crescentes antagonismos e contradições sociais que se acumulavam, como, também, para impedir que as classes subalternas subvertessem a ordem vigente e, ainda, para truncar sua participação no processo político (Segatto.p.201 e 214)

Observando as afirmações de Segatto, Ginzburg em seu trabalho ainda constitui um grupo de obras e autores observados e cita alguns dos grandes nomes da literatura Brasileira como Guimarães Rosa e Clarice Lispector, dentre outros que ser-lhe-ão exemplos e material de pesquisa para seus estudos. Neste texto, ao grupo citado por ele, incluiremos também José J. Veiga e Érico Veríssimo, por imaginarmos que a ambos também fazem jus ao que fala Ginzburg, estando inseridos num grupo de escritores que:

Elaboraram suas representações da condição humana acentuando seu caráter problemático e agônico, em acordo com o fato de que, no contexto histórico brasileiro, a constituição da subjetividade é atingida pela opressão sistemática da estrutura social, de formação autoritária. (Ginzburg. p. 44)
           
A partir disso traçando – e reconstituindo – um diálogo com pensadores como Benjamin, Adorno, Hobsbawn e Selligman, e tendo como horizonte histórico estas afirmativas de Segatto, Ginzburg falará então do trauma, sua relação e abordagem pela literatura e segundo ele:

Em um mundo marcado pela experiência radical da destruição, o trauma se torna um elemento constitutivo da formação social. Por ultrapassar nossos mecanismos de absorção e atribuição de legibilidade aos eventos, o trauma ultrapassa nossas referências de concepção de forma. O problema psicanalítico se torna, na reflexão de um autor, um problema estético. (Ginzburg.p.47)
           
Neste ponto da análise de Ginzburg estabelece-se então diálogo com o que diz Candido: “sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno”, e, portanto, conduz-nos a necessidade de observarmos justamente como o trauma externo e consequentemente nossa formação social e histórica reflete-se como elemento interno nas obras literárias. A partir deste ponto já podemos focalizar o contexto em que as três leituras abordadas neste texto estavam inseridas quando de suas publicações, entre os anos de 1966 e 1972. Sobre esse período Antonio Candido fala que:

O decênio de 1960 foi primeiro turbulento e depois terrível. A princípio, a radicalização generosa mas desorganizada do populismo, no governo João Goulart. Em seguida, graças ao pavor da burguesia e à atuação do imperialismo, o golpe militar de 1964, que se transformou em 1968 de brutalmente opressivo em ferozmente repressivo. (Candido. p.207)

Sobre a produção literária deste período Candido ainda dirá que “o timbre dos anos 60 e sobretudo 70 foram as contribuições de linha experimental e renovadora, refletindo de maneira crispada, na técnica e na concepção da narrativa, esses anos de vanguarda estética e amargura política”, sendo que o crítico sobre a época ainda dirá de suas características da produção literária:
           
Com relação aos que avultam no decênio de 70 pode-se falar em verdadeira, legitimação da pluralidade. Não se trata mais de coexistência pacífica das diversas modalidades de romance e conto, mas do desdobramento destes gêneros, que na verdade deixam de ser gêneros, incorporando técnicas e linguagens nunca dantes imaginadas dentro de suas fronteiras. Resultam textos indefiníveis: romances que mais parecem reportagens; contos que não se distinguem de poemas ou crônicas, semeados de sinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance; narrativas que são cenas de teatro; textos feitos com a justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte. (Candido.p.208)        

Numa observação que nos aproxima das narrativas abordadas neste texto, Antonio Candido ainda observará outra tendência das narrativas do que ele diz que se poderia chamar de “a geração da repressão”. Segundo Candido:

Outra tendência é a ruptura, agora generalizada, do pacto realista (que dominou a ficção por mais de duzentos anos), graças à injeção de um insólito que de recessivo passou a predominante e, como vimos, teve nos contos do absurdo de Murilo Rubião o seu precursor. Com certeza foi a voga da ficção hispano-americana que levou para este rumo o gosto dos autores e do público. (Candido.p.210)

Demonstrando toda a capacidade de observação e compreensão da nossa literatura, Candido além da falar do precursionismo de Murilo Rubião, não deixa, contudo, de demonstrar a relevância de José J. Veiga nesta mesma seara conforme podemos constatar em sua fala sobre a tendência dizendo que “os seus adeptos são legião, mas bem antes de a moda se instalar José J. Veiga tinha publicado Os cavalinhos de Platiplanto (1959) — contos marcados por uma espécie de tranqüilidade catastrófica”. É justamente sobre duas obras de José J. Veiga que passamos tratar a seguir.

Entre cachorros, bois e muros: o insólito de José J. Veiga  



 Como já observamos aqui, José J. Veiga publica seu primeiro livro de contos, Os Cavalinhos de Platiplanto em 1959 e nele já se encontram as principais características que vieram a marcar a produção literária do autor, inclusive as duas obras aqui analisadas, A Hora dos Ruminantes (1966) e Sombras de Reis Barbudos (1972). Se a primeira é publicada apenas dois anos após o golpe militar de 1964, a segunda o é em 1972, já tendo o autor passado pela vivência do recrudecimento da repressão imposta pelo regime militar, especialmente após o AI-5, em 1968 que significou uma restrição ampla dos direitos civis. Fazendo-se aqui a relativização da palavra do autor sobre sua própria obra, permitimo-nos dizer que o contexto externo estava no horizonte de Veiga como propulsor da sua narrativa conforme podemos observar em entrevista em que o autor fala sobre os dois romances e sobre a crítica que recebera pelo primeiro, por demonstrar-se otimista:

Ah, foi. Disseram isso a propósito do final do livro A hora dos ruminantes. Eu não acreditava que aquela ditadura tivesse condições de durar muito. Achei que ela ia se dissolver. Demorou muito mais do que eu esperava. Em A hora dos ruminantes, eu pensava que ela ia ser curta. Por isso aquele final otimista. Os ruminantes foram embora, deixaram a sujeira aí, mas a gente limpa. O relógio da igreja, que estava parado há muito tempo, enguiçado, foi consertado, bateu horas, todo mundo se animou. Fui muito criticado por alguns, que me acharam muito otimista. Daí eu fiz uma espécie de continuação em Sombras de reis barbudos, livro no qual a repressão e o esmagamento chegam ao auge. Mas no fim, pensando bem, a ditadura acabou como está em A hora dos ruminantes: saiu pela porta dos fundos, não foi? (Veiga.in: Revista Banzeiro)

Todavia, observar os dois romances como simples alegorias do regime militar seria um tanto restritivo (reflito sobreisto neste artigo), e como reforça Nepomucemo “cumpre repetir que as análises restritivas da obra de Veiga, que a têm identificado com panfleto contra a ditadura militar no Brasil, devem dar espaço a possibilidades mais amplas”, pois segundo ele é preciso observar na obra do autor como “a violência e o poder como um todo se expandem para um universo além dos limites da política e dos aparelhos do Estado”. Ademais, conforme podemos perceber na citação abaixo, o próprio autor é capaz de demonstrar grande consciência entre os limites do mero panfletarismo e a obra de arte:

É claro que Sombras, Os Pecados, Vasabarros foram contaminados pelo clima político contemporâneo deles, e a coincidência entre o clima interno e externo facilitou a leitura política. Mas meu projeto de escrevê-los não era ficar na mera denúncia de um regime de opressão: se fosse, os livros ficariam datados quando o regime exaurisse, como se exauriu (aliás, durou mais do que eu calculava). O meu projeto era mostrar situações mais profundas do que aquelas impostas por governinho de uns generaizinhos... (Veiga apuda Roncari.p.17)

Se até aqui conseguimos observar então a relação e a experiência entre autor e contexto, não nos demoremos então a adentrarmos o universo de Veiga a partir de seu A Hora dos Ruminantes, romance que conforme Antonio Arnoni Prado “estende a ação das personagens para muito além dos limites possíveis de uma simples resposta às implicações  do estranho pela chegada dos misteriosos cargueiros”. A chegada, aliás, é a primeira das três partes do romance. As outras são: Os dias dos cachorros e O dia dos bois. Nesta primeira parte do livro temos a chegada à Manarairema – cidade que ganha tons de personagem – do grupo de homens que monta acampamento em um terreno abandonado. Tal chegada inicialmente é fruto da curiosidade dos habitantes da bucólica cidadezinha, e os estranhos passam a existir então na curiosidade dos locais sobre os recém chegados que passarão a ser chamados também de Homens da Tapera. Entretanto, inicialmente não há contato entre os moradores de Manarairema e os viajantes, estes, aliás, não demonstram nenhuma necessidade de aproximação aos moradores do lugar, tanto que a primeira tentativa de encontro feita pelo padre local é completamente ignorada. Sobre a relação então estabelecida entre os manarairenses e os viajantes Prado irá dizer:

Vista em perspectiva, a vida em Manarairema, depois deles, se acelera: pessoas perguntam pelos estranhos visitantes, há gente que não dorme, que os vigia de longe, que pergunta pelas ruas, que recebe informes suspeitos, mas a verdade é que, no limite, afora uns breves e atrevidos contatos, aqueles homens, a rigor não se constituem numa grave ameaça. No fundo, eles só se justificam na trama como signo de motivação literária que ganham importância na mediada em que desencadeiam uma reação coletiva que enriquece de temas e de cores, de episódios e de descrições paralelas os bastidores de uma realidade social entorpecida pela miséria e o esquecimento. (Prado.p.15-16)

Mas se Prado acerta ao dizer do processo de aceleração dada a partir da chegada dos visitantes, por outro talvez minimize o risco representado por tais viajantes, conforme podemos ver a partir da invasão de cachorros em O Dia dos Cachorros:  “O derrame de cachorros foi o primeiro sinal forte de que os homens não eram aqueles anjos que Amâncio estava querendo impingir”. Assim, ao final da primeira parte do romance, exceto contatos pontuais “das intenções dos homens, de sua ocupação verdadeira a cidade continuava na mesma ignorância do primeiro dia”. Contudo, se as intenções ou mesmo quem eram de fato os visitantes misteriosos eram desconhecidas, não se poderia deixar de observar, por exemplo, que já estava em movimento o processo de transferência de autoridade local. Até aí, Amâncio, dono de um armazém, já se constituía como propagandista dos homens da tapera e suas ideias, ainda que nem ele e nem os homens dissessem quais eram, e Geminiano já sofria a opressão do trabalho prestado aos viajantes conforme explica Dildélio sobre o fato:

“Cada um sabe onde morde o borrachudo. (...) Se ele ainda não largou  é porque não pode. Ele deve estar passando horrores. Não notaram como mudou? Esse Geminiano aí não é mais aquele antigo; e esse de hoje, amanhã será outro se não parar.” (Veiga.p.57)

Se na primeira parte temos então estes contatos iniciais, a partir do Dia dos Cachorros e o suposto derrame patrocinado pelos homens da tapera se iniciará um processo de subjugação pelo medo e pela desconfiança, estando já quase toda a população de Manarairema em lado oposto ao dos visitantes, agora oprimidos e já sob a autoridade dos estrangeiros. Para isso a invasão dos cachorros cumpre papel fundamental:

A vaga de pelos, de dentes, de patas, de rabos, de uivos chegou inteira e logo se espalhou por toda a parte farejando, raspando, acuando, regando pedras, barrancos, muros, raízes de árvores, unhando portas, choramingando, erguendo-se nas patas traseiras para ver se descobriam nas salas alguma coisa digna de atenção. (Veiga.p.60)

            Assim, os cães tornam-se agentes de vigilância e repressão que sob os olhos, imaginação e desconfiança das pessoas de Manarairema estão a serviço dos homens da tapera. Além disso, as pessoas “fechadas em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as pessoas tapavam os ouvidos, pensavam que não conseguiam compreender aquela inversão da ordem” sendo que a partir deste momento “a ordem era respeitar os cachorros” num período que o narrador irá dizer que “foi um tempo difícil aquele para os puros, os ingênuos, os de boa memória”. Além disso, não podemos negligenciar a capacidade dos homens da tapera em impor o medo, a tal ponto que este, o medo, é perceptível na voz de Amâncio Mendes cuja crítica às vezes simplifica apontando-o como representação de um sujeito adepto aos ideais totalitários, sem observar que há algo com os homens que é capaz de controlar este que até então sempre fora o valentão da cidade, mas que aqui revela-se plenamente subjugado pela autoridades dos estrangeiros:

Aí é que está o seu erro. Você fala como se não tivesse acontecido nada. Direitos? Que direitos! Quem não deve não teme! Tudo isso já morreu. Hoje em dia não é preciso dever para temer. Por que é que você acha que eu estou aqui pedindo, implorando, me rebaixando? Eu devo alguma coisa? E você já me viu com medo algum dia? Você precisa entender que não estamos mais naquele tempo... (Veiga.p,74)

Até aí apenas Apolinário, homem de brio e pai do garoto Mandovi conseguiu estabelecer relativa resistência à pressão exercida pelos homens da tapera, chegando-se ao fim da segunda parte do romance com um cenário em que:

Só as crianças estavam refugando as novidades trazidas pelos homens da tapera. A Gente grande era cheia de prudências, de conveniências, de esperanças de vantagens, ou então simples medo. Pessoas como Apolinário eram raras, e ficavam sozinhas, até as famílias vinham dar aqueles conselhos moles, baseados no olha-lá, pense-bem, é-melhor-ceder. (Veiga.p.117)

Entretanto nem mesmo a subjugação da sociedade de Marairema conforme podemos observar acima foi capaz de estancar o movimento do poder estabelecido no romance, que ainda usaria de mais violência para sua manutenção com O Dia dos Bois, terceira e última parte da narrativa que nos revela um processo gradual de invasão começando lentamente: “fazia dias que os bois vinham aparecendo aqui, ali, nas encostas da serra, nas várzeas, na beira das estradas...” até a tomada completa do espaço-ambiente:

Durante o resto do dia e ainda por toda a noite mais bois chegaram, pisando em tudo, derrubando casa de pobres, invadindo corredores de ricos, espremendo-se uns contra os outros, as cabeças levantadas para os chifres não se embaraçarem, sem espaço nem para erguer o rabo na hora de defecar, a matéria saindo forçada pelas pernas abaixo, breando tudo. (Veiga.p.119)

A partir desse momento a população de Manarairema estará totalmente sitiada, “vivendo como prisioneiros em suas próprias casas” as pessoas só conseguiam comunicar-se graças a agilidade “dos meninos” que conseguiam locomover-se por sobre os bois e além de fazer transitar a informação, também trocar recursos e parcos mantimentos. É, todavia, um movimento clandestino perigoso o dos meninos e sempre cada novo dia mais e mais difícil. Então após dias da presença dos bois, tinha-se então um cenário desolador cuja violência extrapolara até mesmo os limites da verossimilhança esgarçando o espaço e a população local relatando das mortes por pisoteamento, a cidade destruída até o ponto em que o sitiamento atinge seu auge com:

Os meninos não apareciam mais em suas missões de estafetas, deviam estar famintos, prostrados. Sentia-se que a cidade morria quietamente em toda a parte. O relógio da igreja não batia mais, o peso da pedra que rodava o mecanismo da corda devia estar descansando no fundo do poço da torre, ninguém subiria mais a escada escura para girar a manivela e erguer a pedra. (...) Enfraquecidas pela fome e pelos vômitos frequentes, as pessoas passavam a maior parte do tempo deitas, caladas, olhando as telhas, as paredes, sem ânimo até para pensar. (Veiga.p.130)

Mas ao fim, os bois somem tão misteriosamente quanto chegaram, os estrangeiros vão embora e na cidade “ninguém quis perder tempo falando nos homens da tapera, se alguém se lembrou deles foi de passagem, o momento era alto de mais para miudezas, agora era festejar e tocar para frente” num desfecho que provoca todas as discussões acerca do otimismo de José J. Veiga e da própria forma de resistência demonstrada pelos habitantes da cidade, que demandaria por sua vez, uma abordagem específica. Todavia, esse final otimista – ou esperançoso – construído por Veiga seria modificado em Sombras de Reis Barbudos que segundo Roncari “não é tão conhecido quanto A Hora dos Ruminantes, livro que mais identifica o autor, mas sob alguns aspectos, é mais bem acabado”. Como justificativa para tal pensamento, Luiz Roncari aponta três elementos distintivos, a definição de um narrador subjetivo, no caso o jovem Lucas, a atenuação dos contrastes entre o regional e o insólito, e por fim, “o peso maior dos elementos de contextos, histórico e literários, nas definições estilísticas e ficcionais do autor”.
E logo em suas primeiras palavras Sombras de Reis Barbudos (1972) o leitor será tanto apresentado a seu narrador e as motivações de sua escrita como terão acesso à informação de que se ainda abrandada, o autoritarismo e a opressão não se extinguem com a última página do romance, além de descrever o ambiente desolado que é o resultado da história que ele se propõe a narrar:

Está bem, mãe. Vou fazer sua vontade. Vou escrever a história do que aconteceu aqui desde a chegada de Tio Baltazar. Sei que esse pedido insistente é um truque para me prender em casa, a senhora acha perigoso eu ficar andando por aí mesmo hoje, quando os fiscais já não fiscalizam com tanto rigor. Talvez seja mesmo uma boa maneira de passar o tempo, já estou cansado de bater pernas pelos lugares de sempre e só ver tristeza de casas vazias, janelas e portas batendo ao vento, mato crescendo nos pátios antes tão bem tratados, lagartixas passeando atrevidas até em cima dos móveis, gambás fazendo ninhos nos fogões apagados, se vingando do tempo em que corriam perigo até no fundo dos quintais. (Veiga.p.21)

Contrastando com a cena de desolação descrita pelo narrador Lucas, sua história contará da criação da Companhia de Melhoramentos de Taitara, projeto idealizado por Tio Baltazar e que “teria levado às nuvens” o próprio pai de Lucas e cujas intenções não explícitas, mas implícitas é de que trariam progresso e alegria para a população de Taitara. Todavia, a leitura alegórica se faz importante neste romance de José J. Veiga e tanto a Companhia quanto os acontecimentos desenrolados a partir de então estão sob a luz difusa dos mistérios e das camadas que envolvem a narrativa e suas personagens. Isso porque através desse narrador subjetivo se provoca o leitor a embrenhar-se justamente pelos não-ditos, como os rancores entre o pai de Lucas e Tio Baltazar e também a relação entre o garoto e Tia Dulce que aproximam a obra ao romance de formação neste ponto, especificamente.
Estabelecida a Companhia que para alguns críticos pode ser vista como representação de um governo totalitário, o processo de afirmação de sua presença perante os habitantes de Taitara vai se dar sempre sob o signo do mistério visto que sua efetiva função e mesmo seus verdadeiros “donos” permanecem em mistério como vemos na fala de pai de Lucas já dando uma prévia dos movimentos que levariam ao “golpe” contra Tio Baltazar “pessoas influentes podem achar que ele não é tão competente assim. Fique sabendo, Vi, que nem tudo são flores lá na Companhia. Seu irmão Baltazar não manda sozinho. Não se assuste se as coisas mudarem”. As coisas realmente mudaram e:

De repente os muros, esse muros. Da noite para o dia eles brotaram assim retos, curvos, quebrados, descendo, subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o traçado, separando amigos, tapando vistas, escurecendo, abafando. (...) Com tanto muro para encarar quando estávamos parados e rodear quando tínhamos de andar, a vida estava ficando cada dia mais difícil. (Veiga.p.42-43)

Aqui, vejamos, já temos a subtração de qualquer normalidade, com a liberdade restringida e as ações da Companhia dando demonstrações de “sua política”, contudo, segundo o narrador Lucas “aqui em casa até que ainda não podíamos nos queixar. Além de não ser despedido, meu pai ainda foi promovido a fiscal”. O pai de Lucas por sinal será um adepto vigoroso da política da Companhia e dos ideais totalitários da Companhia como demonstra em uma discussão com a esposa:

Veja lá como fala. (...) A Companhia trabalhando sem descanso em benefício de todos, e tratada dessa maneira. E logo por quem! Pela mulher de um fiscal. Você devia agradecer à Companhia todos os dias pela vida que leva. Você está cuspindo no prato que come. Você fala é de mágoa porque puseram seu querido irmão para fora. (...) A Companhia não maltrata ninguém, isso é uma campanha de desmoralização que andam fazendo, mas os responsáveis serão apanhados. [Grifos meus] (Veiga.p.67)

Mas por mais que o pai tentasse argumentar, esconder o caráter autoritário, totlitário e opressor da Companhia é praticamente impossível. Sua política, além da restrição da liberdade, as restrições do ir e vir está calcada na repressão e nas proibições. É o que ocorre em relação aos urubus que atraem a atenção dos moradores. “De repente a Companhia resolveu apertar a rosca contra os urubus. Eles não seriam mais tolerados nas ruas, e quem quisesse ter um urubu em casa teria de registrá-lo”. A natureza proibitiva da Companhia revela-se também na relação construída entre a cidade e o mágico Uzk. Ela, primeiramente tenta evitar que ele venha para cidade. Depois o mago acaba distraindo os moradores dos problemas com a Companhia e ao final a Companhia “caprichou na vingança pelos dias encantados” que Lucas diz ter a cidade passado com o mágico, e “proibições e exigências há muito tempo esquecidas foram desarquivadas e aplicadas de novo com um rigor nunca visto antes”. Conforme conta o narrador “ficou perigoso até perguntar as horas na rua”.
Na verdade, há durante o acontecer narrativo uma adequação da Companhia e do poder que manifesta e exerce e um contra-ataque a qualquer esperança ou sonhos de liberdade que brotem nos habitantes de Taitara, através das alegorias que incutem no romance o insólito e o fantástico. Podemos observar isso quando as pessoas começam a observar pessoas voando pelo céu. “Enquanto o povo se divertia o dia inteiro olhando para o céu agora coalhado de gente voando... a Companhia preparava seus planos”. O plano em questão foi proibir que se olhasse para o alto, e para que se cumprisse a proibição “a Companhia tinha se aparelhado em todos os sentidos... (...) O jeito era obedecer, e andar de cabeça baixa para evitar mal-entendidos” confessa o narrador que no final, que mesmo demonstrando a saturação do regime, relata ainda a presença incômoda e opressiva da Companhia:

De vez em quando a Companhia acorda e organiza desfiles de funcionários com bandas de música e foguetes, carros com alto-falantes rodam por aí fazendo barulho como antigamente em época de eleição, e isso em vez de animar, como parece ser o objetivo, entristece mais porque traz saudade. Os próprios funcionários sopram os instrumentos e malham as zabumbas com aquela moleza de quem trabalha a contragosto, pensando em outra coisa. Passado o desfile, o silêncio volta com mais peso. (Veiga.p.142)

Assim, ao contrário do “otimismo” e clima de festejo do final de A Hora dos Ruminantes, Sombras de Reis Barbudos ganha força pelo enigma, por suas referências e  algo poderoso que exerce o obscuro representado aqui pelos reis barbudos e todas as relações polifônicas que evocam. Ademais, ao final, o relembrar de Lucas ainda deixa tudo em suspenso porque não há o que comemorar já a Companhia ainda persiste e a resistência ocorre em suas distintas formas.

No coreto da praça, a carnavalização dos mortos insepultos

 Cena de série homônima adaptada para televisão

Uma leitura de Incidente em Antares provavelmente poderá nos levar ao que diz Pesavento (2003) de que “história e literatura são formas distintas, porém próximas, de dizer a realidade e de lhe atribuir/desvelar sentidos”. Publicado por Érico Veríssimo em 1972, o romance é dividido em duas partes, sendo que na primeira ele traça o panorama social e histórico da formação da fictícia cidade de Antares interligando-o com a própria história do Rio Grande do Sul como já fizera em O Tempo e o Vento utilizando tal recurso. A relação do livro com a história, aliás, fica nítida com a curiosa nota do autor na introdução ao romance: “neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram, são designados por seus nomes verdadeiros”. Além disso, a proximidade entre história e literatura não estará tão somente na relação entre contextos, interno e externo, mas haverá no coração da narrativa até mesmo uma reflexão sobre a memória e o registro da história, que geralmente esta alicerçada sob os expurgos da violência e do caráter autoritário, como podemos observar:

A esta altura da presente narrativa é natural que o leitor esteja inclinado a perguntar se não existiam em Antares homens de bem e de paz, com comportamentos e sentimentos cristãos. A pergunta é pertinente e a resposta, sem a menor dúvida, afirmativa. Havia, sim, e muitos. Desgraçadamente, seus ditos, feitos e gestos não foram recolhidos pela história oficial. (...) Os livros escolares, cujo objetivo é ensinar-nos a história da nossa terra e do nosso povo, são em geral, escritos num espírito maniqueísta, seguindo as clássicas antíteses – os bons e os maus, os heróis e os covardes, os santos e os bandidos. (...) Via de regra, não se empregam nesses compêndios as cores intermediárias, pois seus autores parecem desconhecer a virtude dos matizes e o truísmo de que a história não pode ser escrita apenas em preto e branco. (Veríssimo.p.24)

Se a perspectiva de uma leitura do romance por seu viés da relação entre história e literatura já reúne elementos de interesse, será, contudo, a segunda parte da narrativa que o incluirá no grupo de escrita que caracterizou outros semelhantes de sua época. É nesta parte que teremos narrado o incidente, no caso, o desfile dos mortos insepultos que sem a possibilidade de serem enterrados por causa de uma greve geral na cidade – da qual aderiram os coveiros –, em uma sexta-feira 13 de dezembro de 1963 reúnem-se em pleno coreto da praça central. Esse fato além de possibilitar incluir o romance dentro das características das narrativas a ele contemporâneas, ou seja, o rompimento da corrente realista optando pelo fantástico, também nos proporciona uma leitura a partir do conceito de carnavalização elaborado por Bahktin. Conforme Bahktin observou “o carnaval era o triunfo de uma espécie de libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente, a abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus” e é o que podemos perceber a partir do incidente – mas não somente durante ele – com a “transposição do carnaval para a linguagem da literatura” existente em Incidente em Antares.
Não poderíamos, aqui, sobre o respectivo romance de Érico Veríssimo à luz da carnavalização, falar melhor do que o amplo trabalho de Valeria Cristina da Silva que ao final conclui que “conseguimos, por meio do carnaval, no que concerne ao último romance de Érico Veríssimo, observar que este elemento se relaciona com diversos aspectos e temas da narrativa”, porém, neste breve texto, voltaremos nossos olhares para o momento em que talvez esteja mais intensificado o processo de carnavalização na linguagem do romance, sendo também quando teremos nesta “libertação temporária” uma reflexão bastante ácida e crítica sobre a constituição social.
 A praça pública tem especial importância para o carnaval, e é nela que se dá uma das principais passagens do romance; é quando os mortos e vivos encontram-se para uma espécie de julgamento de seus atos. Nesse processo os seis insepultos liderados pelo quando vivo, advogado Cícero Branco, estão reunidos no coreto sob os olhares da comunidade. A descrição narrativa soa como uma grande pantomima, com os círculos sociais ao redor dos mortos e sobre as árvores, como que se nas inquisições medievais, o povo jubila-se diante os ataques entre mortos e vivos, mais especificamente com as acusações e as máscaras que caem durante o ato. Todavia, há algumas peculiaridades e especificidades a se observar, como a declaração de Cícero Branco, de que “a morte me confere todas as imunidades, estou completamente fora do alcance das leis dos homens”, pois, ao mesmo tempo que dá conta de sua situação específica e que reforça o processo de carnavalização, também o aproxima do seu “eu” vivo, um advogado corrupto e conhecedor dos caminhos da lei a ponto de o livrarem sempre das “garras da justiça”, de modo que talvez seja entre os mortos o que mais mantenha-se como era vivo, pois, ficará sempre a dúvida se as denúncias que fará o são pela nova perspectiva de morto ou apenas pela certeza da inimputabilidade de seus crimes confessos. Será este Cícero Branco o responsável por organizar o “carnaval” na praça central onde virão a público as “podridões” da sociedade antarense, que talvez melhor representação se dará na seguinte metáfora:

Nosso anarco-sindicalista acaba de me soprar um “fecho de ouro” para minha metáfora do baile de máscaras... Para vós o importante é que a festa continue, que não se toque na estrutura, não se alterem os estatutos do clube onde os privilegiados se divertem. A canalha que não pode tomar parte da festa e se amontoa lá fora no sereno envergando a triste fantasia e a trágica máscara da miséria, deve permanecer onde está, porque vós os convivas felizes achais que pobres sempre os haverá, como disse Jesus. E por isso pagais a vossa polícia para que ela vos defenda no dia em que a plebe decidir invadir o salão onde vos entregais às vossas danças, libações, amores e outros divertimentos. (Veríssimo.p.344-345)

Contudo, é preciso lembrarmo-nos de que o carnaval constitui-se de período específico e limitado de tempo, assim, a destituição dos limites e ordenamento social é temporária, o que também poderemos observar através do incidente. O fato é datado e por diversos mecanismos, até mesmo posto em suspeição os acontecimentos. Deste modo as denúncias das mazelas sociais além de datadas estão sujeitas ao esmaecimento da memória. Deste modo, a carnavalização permitiu uma pequena brecha, pela qual através das delações, as corrupções, perversões e contradições antarenses pudessem vir à tona. Entretanto, a sequência após o acontecido é talvez quando Érico Veríssimo demonstrará com maior veemência o caráter autoritário e opressor do Estado de tal modo que se construirão formas de apagar os fatos da lembrança coletiva. Para isso, o círculo do poder não poderia confiar apenas no trabalho do tempo sobre a memória, tendo de atura de forma ativa através da sugestiva “operação borracha” que “continuava a despeito dos esforços em contrário feito pelas esquerdas e pelas cartas anônimas”. Para este apagamento, especialistas foram levados a cidade e colocaram os fatos em dúvida, a imprensa não publicou a verdade e a própria sociedade foi organizando e reorganizando suas atividades sociais de tal modo que “sete anos após aquela terrível sexta-feira 13 de dezembro de 1963, pode-se afirmar, sem nenhum risco ou exagero que Antares conseguiu esquecer seu macabro incidente. Ou soube disfarçar muito bem.”  De modo que a história então fosse apagando aos poucos tal acontecimento enquanto a literatura o registrava.

            Enfim, para finalizarmos estas breves reflexões e comentários resumidos acerca destas três narrativas, entre bois, muros e mortos insepultos, certamente não nos aprofundamos em demasia, entretanto é possível termos uma compreensão das respectivas obras literárias dentro das características de suas épocas; uma época em que se foi necessário partir para o fantástico e para o “carnaval” rompendo com as realistas em parte porque a realidade externa para poder ser analisada e discutida necessitava deste rompimento de linguagem buscando-se outras formas de refletir o caráter autoritário e opressivo do “mundo real” a que tais obras estavam submetidas.
  


Bibliografia

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
BATALHA, Maria Cristina (org). O Fantástico Brasileiro: Contos Esquecidos. Rio de Janeiro, Editora Cetés, 2011.
CANDIDO, Antônio. A Educação pela noite e outros ensaios: Editora Ática. São Paulo, 1989.
GINZBURG, Jaime. Autoritarismo e Literatura: A História Como Trauma. 2000.
SANTIAGO, Silviano. Repressão e censura no campo das artes na década de 70. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 1982.
SEGATTO, Jose Antonio. Cidadania e Ficção. In: Sociedade e Literatura no Brasil. Unesp: 1999.
SILVA, Maria Valeria. O carnaval de Antares: Fantástico e a carnavalização literária em Incidente em Antares. Universidade Federal de São Carlos, 2014.
VEIGA, J. José. A Hora dos Ruminantes: Compainha das Letras, São Paulo, 2015.
________. Sombras de Reis Barbudos: Compainha das Letras, São Paulo, 2015.

________. Em: Entrevista José J. Veiga, Revista Banzeiro. Disponível em <http://banzeirotextual.blogspot.com.br/2010/03/jose-j-veiga-entrevista.html> Acesso: 25/11/2015.