Por Douglas Eralldo
A esta altura do curso Sob a égide do totalitarismo eautoritarismo: a literatura como reflexão já passamos pela leitura,
reflexões e interpretações de uma série de narrativas distópicas que dentre
outras coisas, nos propiciaram olhares para os regimes totalitários, seu
funcionamento, características, opressão e violência presentes em tais formas políticas
em que o controle é total sobre o indivíduo. Para tanto, observamos um conjunto
de leituras clássicas do gênero, em sua maioria romances estrangeiros, cabendo
a Não Verás País Nenhum, de Ignácio
de Loyola Brandão a obra nacional dentre as distopias analisadas. Agora, nesta
etapa do projeto de extensão, nossos olhares estarão centrados na produção
literária brasileira. Para isso, somando-se ao já citado romance de Loyola
Brandão (cujos contos O Homem Com o Furo
na Mão e Cadeiras Proibidas
também foram trabalhados durante os encontros) incluiremos em nossas leituras e
interpretações os romances A Hora dos
Ruminantes e Sombras de Reis
Barbudos, de José J. Veiga e Incidente
em Antares, de Érico Veríssimo. Contudo, antes de nos dedicarmos a estas
obras, faz-se importante observarmos alguns elementos de abordagem sobre
autoritarismo e literatura brasileira.
Pensar literatura e autoritarismo no
Brasil, nos leva de imediato a observarmos o trabalho de Jaime Ginzburg em que o
autor reflete sobre Autoritarismo e
Literatura: A História Como Trauma. Nesta sua produção o autor declara:
Alguns dos maiores escritores
brasileiros se dedicaram a lidar com temas referentes a experiências de
autoritarismo, violência e opressão. E alguns dentre eles abdicaram da
perspectiva realista, que faz supor, conforme Ian Watt, uma capacidade de
compreensão do objeto representado, em parâmetros documentais e ou racionais.
Em vez dela, procuraram tensionar o limite entre realidade e imaginação,
subverter parâmetros tradicionais, apontar ambivalências da linguagem, pautar a
representação em contradições, romper, enfim, com os padrões tradicionais de
entendimento e consciência da linguagem. (Ginzburg.p.50)
Nessa perspectiva, o autor ainda
observa e lembra-nos de que :
A crise do sujeito no Brasil, não
se dá nas mesmas condições nem pelas mesmas razões que se dá em países
europeus. A constituição do sujeito, contextualizada na formação social
brasileira, é abalada desde suas bases pelo polo violento e destrutivo em que
se desenvolve. (Ginzburg. p.45)
Para construir seu pensamento acerca do
trauma, literatura e história, Jaime Ginzburg – e nós aqui também – terá em
conta a permanente presença do processo autoritário e da violência na formação
social brasileira, que também nos é afirmada por Segatto:
Há um certo consenso na
historiografia segundo o qual o processo histórico brasileiro caracterizou-se
por ter sido marcadamente excludente e autoritário. (...) O Estado no Brasil,
independente das formas e composições que assumiu nos diferentes momentos e
períodos (Monarquia e República; imperial, oligárquico, corporativo,
ditatorial, etc.) tem ao longo da história uma características essencial comum:
de se impor autoritariamente sobre a sociedade civil. (...) A classe dominante
sempre procurou rearticular e reorganizar as formas de dominação política e
acumulação de capital para fazer frente aos crescentes antagonismos e
contradições sociais que se acumulavam, como, também, para impedir que as
classes subalternas subvertessem a ordem vigente e, ainda, para truncar sua
participação no processo político (Segatto.p.201 e 214)
Observando as afirmações de Segatto,
Ginzburg em seu trabalho ainda constitui um grupo de obras e autores observados
e cita alguns dos grandes nomes da literatura Brasileira como Guimarães Rosa e
Clarice Lispector, dentre outros que ser-lhe-ão exemplos e material de pesquisa
para seus estudos. Neste texto, ao grupo citado por ele, incluiremos também
José J. Veiga e Érico Veríssimo, por imaginarmos que a ambos também fazem jus ao
que fala Ginzburg, estando inseridos num grupo de escritores que:
Elaboraram suas representações da
condição humana acentuando seu caráter problemático e agônico, em acordo com o
fato de que, no contexto histórico brasileiro, a constituição da subjetividade
é atingida pela opressão sistemática da estrutura social, de formação
autoritária. (Ginzburg. p. 44)
A partir disso traçando – e
reconstituindo – um diálogo com pensadores como Benjamin, Adorno, Hobsbawn e
Selligman, e tendo como horizonte histórico estas afirmativas de Segatto,
Ginzburg falará então do trauma, sua relação e abordagem pela literatura e
segundo ele:
Em um mundo marcado pela
experiência radical da destruição, o trauma se torna um elemento constitutivo
da formação social. Por ultrapassar nossos mecanismos de absorção e atribuição
de legibilidade aos eventos, o trauma ultrapassa nossas referências de
concepção de forma. O problema psicanalítico se torna, na reflexão de um autor,
um problema estético. (Ginzburg.p.47)
Neste ponto da análise de Ginzburg
estabelece-se então diálogo com o que diz Candido: “sabemos, ainda, que o
externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas
como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura,
tornando-se, portanto, interno”, e, portanto, conduz-nos a necessidade de
observarmos justamente como o trauma externo e consequentemente nossa formação
social e histórica reflete-se como elemento interno nas obras literárias. A
partir deste ponto já podemos focalizar o contexto em que as três leituras
abordadas neste texto estavam inseridas quando de suas publicações, entre os
anos de 1966 e 1972. Sobre esse período Antonio Candido fala que:
O decênio de 1960 foi primeiro
turbulento e depois terrível. A princípio, a radicalização generosa mas
desorganizada do populismo, no governo João Goulart. Em seguida, graças ao
pavor da burguesia e à atuação do imperialismo, o golpe militar de 1964, que se
transformou em 1968 de brutalmente opressivo em ferozmente repressivo.
(Candido. p.207)
Sobre a produção literária deste período
Candido ainda dirá que “o timbre dos anos 60 e sobretudo 70 foram as
contribuições de linha experimental e renovadora, refletindo de maneira
crispada, na técnica e na concepção da narrativa, esses anos de vanguarda
estética e amargura política”, sendo que o crítico sobre a época ainda dirá de suas
características da produção literária:
Com relação aos que avultam no
decênio de 70 pode-se falar em verdadeira, legitimação da pluralidade. Não se
trata mais de coexistência pacífica das diversas modalidades de romance e
conto, mas do desdobramento destes gêneros, que na verdade deixam de ser gêneros,
incorporando técnicas e linguagens nunca dantes imaginadas dentro de suas
fronteiras. Resultam textos indefiníveis: romances que mais parecem
reportagens; contos que não se distinguem de poemas ou crônicas, semeados de
sinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance;
narrativas que são cenas de teatro; textos feitos com a justaposição de
recortes, documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte. (Candido.p.208)
Numa observação que nos aproxima das
narrativas abordadas neste texto, Antonio Candido ainda observará outra
tendência das narrativas do que ele diz que se poderia chamar de “a geração da
repressão”. Segundo Candido:
Outra tendência é a ruptura,
agora generalizada, do pacto realista (que dominou a ficção por mais de
duzentos anos), graças à injeção de um insólito que de recessivo passou a
predominante e, como vimos, teve nos contos do absurdo de Murilo Rubião o seu
precursor. Com certeza foi a voga da ficção hispano-americana que levou para
este rumo o gosto dos autores e do público. (Candido.p.210)
Demonstrando toda a capacidade de
observação e compreensão da nossa literatura, Candido além da falar do
precursionismo de Murilo Rubião, não deixa, contudo, de demonstrar a relevância
de José J. Veiga nesta mesma seara conforme podemos constatar em sua fala sobre
a tendência dizendo que “os seus
adeptos são legião, mas bem antes de a moda se instalar José J. Veiga tinha
publicado Os cavalinhos de Platiplanto (1959)
— contos marcados por uma espécie de tranqüilidade catastrófica”. É justamente
sobre duas obras de José J. Veiga que passamos tratar a seguir.
Entre cachorros, bois e
muros: o insólito de José J. Veiga
Como
já observamos aqui, José J. Veiga publica seu primeiro livro de contos, Os Cavalinhos de Platiplanto em 1959 e
nele já se encontram as principais características que vieram a marcar a
produção literária do autor, inclusive as duas obras aqui analisadas, A Hora dos Ruminantes (1966) e Sombras de Reis Barbudos (1972). Se a
primeira é publicada apenas dois anos após o golpe militar de 1964, a segunda o
é em 1972, já tendo o autor passado pela vivência do recrudecimento da
repressão imposta pelo regime militar, especialmente após o AI-5, em 1968 que
significou uma restrição ampla dos direitos civis. Fazendo-se aqui a
relativização da palavra do autor sobre sua própria obra, permitimo-nos dizer
que o contexto externo estava no horizonte de Veiga como propulsor da sua narrativa
conforme podemos observar em entrevista em que o autor fala sobre os dois
romances e sobre a crítica que recebera pelo primeiro, por demonstrar-se otimista:
Ah, foi. Disseram isso a
propósito do final do livro A hora dos
ruminantes. Eu não acreditava que aquela ditadura tivesse condições de
durar muito. Achei que ela ia se dissolver. Demorou muito mais do que eu
esperava. Em A hora dos ruminantes, eu pensava que ela ia ser curta. Por isso
aquele final otimista. Os ruminantes foram embora, deixaram a sujeira aí, mas a
gente limpa. O relógio da igreja, que estava parado há muito tempo, enguiçado,
foi consertado, bateu horas, todo mundo se animou. Fui muito criticado por
alguns, que me acharam muito otimista. Daí eu fiz uma espécie de continuação em
Sombras de reis barbudos, livro no
qual a repressão e o esmagamento chegam ao auge. Mas no fim, pensando bem, a
ditadura acabou como está em A hora dos ruminantes: saiu pela porta dos fundos,
não foi? (Veiga.in: Revista Banzeiro)
Todavia, observar os dois romances como
simples alegorias do regime militar seria um tanto restritivo (reflito sobreisto neste artigo), e como reforça Nepomucemo “cumpre repetir que as análises
restritivas da obra de Veiga, que a têm identificado com panfleto contra a ditadura
militar no Brasil, devem dar espaço a possibilidades mais amplas”, pois segundo
ele é preciso observar na obra do autor como “a violência e o poder como um
todo se expandem para um universo além dos limites da política e dos aparelhos
do Estado”. Ademais, conforme podemos perceber na citação abaixo, o próprio
autor é capaz de demonstrar grande consciência entre os limites do mero
panfletarismo e a obra de arte:
É claro que Sombras, Os Pecados, Vasabarros foram contaminados pelo clima
político contemporâneo deles, e a coincidência entre o clima interno e externo
facilitou a leitura política. Mas meu projeto de escrevê-los não era ficar na
mera denúncia de um regime de opressão: se fosse, os livros ficariam datados
quando o regime exaurisse, como se exauriu (aliás, durou mais do que eu
calculava). O meu projeto era mostrar situações mais profundas do que aquelas
impostas por governinho de uns generaizinhos... (Veiga apuda Roncari.p.17)
Se até aqui conseguimos observar então a
relação e a experiência entre autor e contexto, não nos demoremos então a
adentrarmos o universo de Veiga a partir de seu A Hora dos Ruminantes, romance que conforme Antonio Arnoni Prado
“estende a ação das personagens para muito além dos limites possíveis de uma
simples resposta às implicações do
estranho pela chegada dos misteriosos cargueiros”. A chegada, aliás, é a primeira das três partes do romance. As
outras são: Os dias dos cachorros e O dia dos bois. Nesta primeira parte do
livro temos a chegada à Manarairema – cidade que ganha tons de personagem – do
grupo de homens que monta acampamento em um terreno abandonado. Tal chegada
inicialmente é fruto da curiosidade dos habitantes da bucólica cidadezinha, e
os estranhos passam a existir então
na curiosidade dos locais sobre os recém chegados que passarão a ser chamados
também de Homens da Tapera. Entretanto,
inicialmente não há contato entre os moradores de Manarairema e os viajantes,
estes, aliás, não demonstram nenhuma necessidade de aproximação aos moradores
do lugar, tanto que a primeira tentativa de encontro feita pelo padre local é
completamente ignorada. Sobre a relação então estabelecida entre os
manarairenses e os viajantes Prado irá dizer:
Vista em perspectiva, a vida em
Manarairema, depois deles, se acelera: pessoas perguntam pelos estranhos
visitantes, há gente que não dorme, que os vigia de longe, que pergunta pelas
ruas, que recebe informes suspeitos, mas a verdade é que, no limite, afora uns
breves e atrevidos contatos, aqueles homens, a rigor não se constituem numa
grave ameaça. No fundo, eles só se justificam na trama como signo de motivação
literária que ganham importância na mediada em que desencadeiam uma reação
coletiva que enriquece de temas e de cores, de episódios e de descrições
paralelas os bastidores de uma realidade social entorpecida pela miséria e o
esquecimento. (Prado.p.15-16)
Mas se Prado acerta ao dizer do processo
de aceleração dada a partir da chegada dos visitantes, por outro talvez
minimize o risco representado por tais viajantes, conforme podemos ver a partir
da invasão de cachorros em O Dia dos Cachorros:
“O derrame de cachorros foi o
primeiro sinal forte de que os homens não eram aqueles anjos que Amâncio estava
querendo impingir”. Assim, ao final da primeira parte do romance, exceto
contatos pontuais “das intenções dos homens, de sua ocupação verdadeira a
cidade continuava na mesma ignorância do primeiro dia”. Contudo, se as
intenções ou mesmo quem eram de fato os visitantes misteriosos eram
desconhecidas, não se poderia deixar de observar, por exemplo, que já estava em
movimento o processo de transferência de autoridade local. Até aí, Amâncio,
dono de um armazém, já se constituía como propagandista dos homens da tapera e
suas ideias, ainda que nem ele e nem os homens dissessem quais eram, e
Geminiano já sofria a opressão do trabalho prestado aos viajantes conforme
explica Dildélio sobre o fato:
“Cada um sabe onde morde o
borrachudo. (...) Se ele ainda não largou
é porque não pode. Ele deve estar passando horrores. Não notaram como
mudou? Esse Geminiano aí não é mais aquele antigo; e esse de hoje, amanhã será
outro se não parar.” (Veiga.p.57)
Se na primeira parte temos então estes
contatos iniciais, a partir do Dia dos
Cachorros e o suposto derrame patrocinado pelos homens da tapera se iniciará
um processo de subjugação pelo medo e pela desconfiança, estando já quase toda
a população de Manarairema em lado oposto ao dos visitantes, agora oprimidos e
já sob a autoridade dos estrangeiros. Para isso a invasão dos cachorros cumpre
papel fundamental:
A vaga de pelos, de dentes, de
patas, de rabos, de uivos chegou inteira e logo se espalhou por toda a parte
farejando, raspando, acuando, regando pedras, barrancos, muros, raízes de
árvores, unhando portas, choramingando, erguendo-se nas patas traseiras para
ver se descobriam nas salas alguma coisa digna de atenção. (Veiga.p.60)
Assim, os cães tornam-se agentes de
vigilância e repressão que sob os olhos, imaginação e desconfiança das pessoas
de Manarairema estão a serviço dos homens da tapera. Além disso, as pessoas “fechadas
em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as pessoas
tapavam os ouvidos, pensavam que não
conseguiam compreender aquela inversão da ordem” sendo que a partir deste
momento “a ordem era respeitar os cachorros” num período que o narrador irá
dizer que “foi um tempo difícil aquele para os puros, os ingênuos, os de boa
memória”. Além disso, não podemos negligenciar a capacidade dos homens da
tapera em impor o medo, a tal ponto que este, o medo, é perceptível na voz de Amâncio
Mendes cuja crítica às vezes simplifica apontando-o como representação de um
sujeito adepto aos ideais totalitários, sem observar que há algo com os homens
que é capaz de controlar este que até então sempre fora o valentão da cidade,
mas que aqui revela-se plenamente subjugado pela autoridades dos estrangeiros:
Aí é que está o seu erro. Você
fala como se não tivesse acontecido nada. Direitos? Que direitos! Quem não deve
não teme! Tudo isso já morreu. Hoje em dia não é preciso dever para temer. Por
que é que você acha que eu estou aqui pedindo, implorando, me rebaixando? Eu
devo alguma coisa? E você já me viu com medo algum dia? Você precisa entender
que não estamos mais naquele tempo... (Veiga.p,74)
Até aí apenas Apolinário, homem de brio e pai do garoto Mandovi
conseguiu estabelecer relativa resistência à pressão exercida pelos homens da
tapera, chegando-se ao fim da segunda parte do romance com um cenário em que:
Só as crianças estavam refugando
as novidades trazidas pelos homens da tapera. A Gente grande era cheia de prudências,
de conveniências, de esperanças de vantagens, ou então simples medo. Pessoas
como Apolinário eram raras, e ficavam sozinhas, até as famílias vinham dar
aqueles conselhos moles, baseados no olha-lá, pense-bem, é-melhor-ceder.
(Veiga.p.117)
Entretanto nem mesmo a subjugação da
sociedade de Marairema conforme podemos observar acima foi capaz de estancar o
movimento do poder estabelecido no romance, que ainda usaria de mais violência
para sua manutenção com O Dia dos Bois,
terceira e última parte da narrativa que nos revela um processo gradual de
invasão começando lentamente: “fazia dias que os bois vinham aparecendo aqui,
ali, nas encostas da serra, nas várzeas, na beira das estradas...” até a tomada
completa do espaço-ambiente:
Durante o resto do dia e ainda
por toda a noite mais bois chegaram, pisando em tudo, derrubando casa de
pobres, invadindo corredores de ricos, espremendo-se uns contra os outros, as
cabeças levantadas para os chifres não se embaraçarem, sem espaço nem para
erguer o rabo na hora de defecar, a matéria saindo forçada pelas pernas abaixo,
breando tudo. (Veiga.p.119)
A partir desse momento a população de
Manarairema estará totalmente sitiada, “vivendo como prisioneiros em suas
próprias casas” as pessoas só conseguiam comunicar-se graças a agilidade “dos
meninos” que conseguiam locomover-se por sobre os bois e além de fazer
transitar a informação, também trocar recursos e parcos mantimentos. É, todavia,
um movimento clandestino perigoso o dos meninos e sempre cada novo dia mais e
mais difícil. Então após dias da presença dos bois, tinha-se então um cenário
desolador cuja violência extrapolara até mesmo os limites da verossimilhança
esgarçando o espaço e a população local relatando das mortes por pisoteamento,
a cidade destruída até o ponto em que o sitiamento atinge seu auge com:
Os meninos não apareciam mais em
suas missões de estafetas, deviam estar famintos, prostrados. Sentia-se que a
cidade morria quietamente em toda a parte. O relógio da igreja não batia mais,
o peso da pedra que rodava o mecanismo da corda devia estar descansando no
fundo do poço da torre, ninguém subiria mais a escada escura para girar a
manivela e erguer a pedra. (...) Enfraquecidas pela fome e pelos vômitos
frequentes, as pessoas passavam a maior parte do tempo deitas, caladas, olhando
as telhas, as paredes, sem ânimo até para pensar. (Veiga.p.130)
Mas ao fim, os bois somem tão
misteriosamente quanto chegaram, os estrangeiros vão embora e na cidade
“ninguém quis perder tempo falando nos homens da tapera, se alguém se lembrou
deles foi de passagem, o momento era alto de mais para miudezas, agora era
festejar e tocar para frente” num desfecho que provoca todas as discussões
acerca do otimismo de José J. Veiga e
da própria forma de resistência demonstrada pelos habitantes da cidade, que
demandaria por sua vez, uma abordagem específica. Todavia, esse final otimista – ou esperançoso – construído por Veiga seria modificado em Sombras de
Reis Barbudos que segundo Roncari “não é tão conhecido quanto A Hora dos Ruminantes, livro que mais
identifica o autor, mas sob alguns aspectos, é mais bem acabado”. Como
justificativa para tal pensamento, Luiz Roncari aponta três elementos
distintivos, a definição de um narrador
subjetivo, no caso o jovem Lucas, a atenuação dos contrastes entre o
regional e o insólito, e por fim, “o peso maior dos elementos de contextos,
histórico e literários, nas definições estilísticas e ficcionais do autor”.
E logo em suas primeiras palavras Sombras de Reis Barbudos (1972) o leitor
será tanto apresentado a seu narrador e as motivações de sua escrita como terão
acesso à informação de que se ainda abrandada, o autoritarismo e a opressão não
se extinguem com a última página do romance, além de descrever o ambiente
desolado que é o resultado da história que ele se propõe a narrar:
Está bem, mãe. Vou fazer sua
vontade. Vou escrever a história do que aconteceu aqui desde a chegada de Tio
Baltazar. Sei que esse pedido insistente é um truque para me prender em casa, a
senhora acha perigoso eu ficar andando por aí mesmo hoje, quando os fiscais já
não fiscalizam com tanto rigor. Talvez seja mesmo uma boa maneira de passar o
tempo, já estou cansado de bater pernas pelos lugares de sempre e só ver
tristeza de casas vazias, janelas e portas batendo ao vento, mato crescendo nos
pátios antes tão bem tratados, lagartixas passeando atrevidas até em cima dos
móveis, gambás fazendo ninhos nos fogões apagados, se vingando do tempo em que
corriam perigo até no fundo dos quintais. (Veiga.p.21)
Contrastando com a cena de desolação
descrita pelo narrador Lucas, sua história contará da criação da Companhia de
Melhoramentos de Taitara, projeto idealizado por Tio Baltazar e que “teria
levado às nuvens” o próprio pai de Lucas e cujas intenções não explícitas, mas
implícitas é de que trariam progresso e alegria para a população de Taitara.
Todavia, a leitura alegórica se faz importante neste romance de José J. Veiga e
tanto a Companhia quanto os acontecimentos desenrolados a partir de então estão
sob a luz difusa dos mistérios e das camadas que envolvem a narrativa e suas
personagens. Isso porque através desse narrador subjetivo se provoca o leitor a
embrenhar-se justamente pelos não-ditos, como os rancores entre o pai de Lucas
e Tio Baltazar e também a relação entre o garoto e Tia Dulce que aproximam a
obra ao romance de formação neste ponto, especificamente.
Estabelecida a Companhia que para alguns
críticos pode ser vista como representação de um governo totalitário, o
processo de afirmação de sua presença perante os habitantes de Taitara vai se
dar sempre sob o signo do mistério visto que sua efetiva função e mesmo seus
verdadeiros “donos” permanecem em mistério como vemos na fala de pai de Lucas
já dando uma prévia dos movimentos que levariam ao “golpe” contra Tio Baltazar
“pessoas influentes podem achar que ele não é tão competente assim. Fique
sabendo, Vi, que nem tudo são flores lá na Companhia. Seu irmão Baltazar não
manda sozinho. Não se assuste se as coisas mudarem”. As coisas realmente
mudaram e:
De repente os muros, esse muros.
Da noite para o dia eles brotaram assim retos, curvos, quebrados, descendo,
subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o traçado, separando amigos,
tapando vistas, escurecendo, abafando. (...) Com tanto muro para encarar quando
estávamos parados e rodear quando tínhamos de andar, a vida estava ficando cada
dia mais difícil. (Veiga.p.42-43)
Aqui, vejamos, já temos a subtração de
qualquer normalidade, com a liberdade restringida e as ações da Companhia dando
demonstrações de “sua política”, contudo, segundo o narrador Lucas “aqui em
casa até que ainda não podíamos nos queixar. Além de não ser despedido, meu pai
ainda foi promovido a fiscal”. O pai de Lucas por sinal será um adepto vigoroso
da política da Companhia e dos ideais totalitários da Companhia como demonstra
em uma discussão com a esposa:
Veja lá como fala. (...) A
Companhia trabalhando sem descanso em benefício de todos, e tratada dessa
maneira. E logo por quem! Pela mulher de um fiscal. Você devia agradecer à
Companhia todos os dias pela vida que leva. Você está cuspindo no prato que
come. Você fala é de mágoa porque puseram seu querido irmão para fora. (...) A
Companhia não maltrata ninguém, isso é uma campanha de desmoralização que andam
fazendo, mas os responsáveis serão
apanhados. [Grifos meus] (Veiga.p.67)
Mas por mais que o pai tentasse
argumentar, esconder o caráter autoritário, totlitário e opressor da Companhia
é praticamente impossível. Sua política, além da restrição da liberdade, as
restrições do ir e vir está calcada na repressão e nas proibições. É o que
ocorre em relação aos urubus que atraem a atenção dos moradores. “De repente a
Companhia resolveu apertar a rosca contra os urubus. Eles não seriam mais
tolerados nas ruas, e quem quisesse ter um urubu em casa teria de registrá-lo”.
A natureza proibitiva da Companhia revela-se também na relação construída entre
a cidade e o mágico Uzk. Ela, primeiramente tenta evitar que ele venha para
cidade. Depois o mago acaba distraindo os moradores dos problemas com a
Companhia e ao final a Companhia “caprichou na vingança pelos dias encantados”
que Lucas diz ter a cidade passado com o mágico, e “proibições e exigências há
muito tempo esquecidas foram desarquivadas e aplicadas de novo com um rigor
nunca visto antes”. Conforme conta o narrador “ficou perigoso até perguntar as
horas na rua”.
Na verdade, há durante o acontecer
narrativo uma adequação da Companhia e do poder que manifesta e exerce e um
contra-ataque a qualquer esperança ou sonhos de liberdade que brotem nos
habitantes de Taitara, através das alegorias que incutem no romance o insólito
e o fantástico. Podemos observar isso quando as pessoas começam a observar
pessoas voando pelo céu. “Enquanto o povo se divertia o dia inteiro olhando
para o céu agora coalhado de gente voando... a Companhia preparava seus
planos”. O plano em questão foi proibir que se olhasse para o alto, e para que
se cumprisse a proibição “a Companhia tinha se aparelhado em todos os
sentidos... (...) O jeito era obedecer, e andar de cabeça baixa para evitar
mal-entendidos” confessa o narrador que no final, que mesmo demonstrando a
saturação do regime, relata ainda a presença incômoda e opressiva da Companhia:
De vez em quando a Companhia
acorda e organiza desfiles de funcionários com bandas de música e foguetes,
carros com alto-falantes rodam por aí fazendo barulho como antigamente em época
de eleição, e isso em vez de animar, como parece ser o objetivo, entristece
mais porque traz saudade. Os próprios funcionários sopram os instrumentos e malham
as zabumbas com aquela moleza de quem trabalha a contragosto, pensando em outra
coisa. Passado o desfile, o silêncio volta com mais peso. (Veiga.p.142)
Assim, ao contrário do “otimismo” e
clima de festejo do final de A Hora dos
Ruminantes, Sombras de Reis Barbudos
ganha força pelo enigma, por suas referências e
algo poderoso que exerce o obscuro representado aqui pelos reis barbudos
e todas as relações polifônicas que evocam. Ademais, ao final, o relembrar de
Lucas ainda deixa tudo em suspenso porque não há o que comemorar já a Companhia
ainda persiste e a resistência ocorre em suas distintas formas.
No coreto da praça, a
carnavalização dos mortos insepultos
Cena de série homônima adaptada para televisão
Uma leitura de Incidente em Antares provavelmente poderá nos levar ao que diz
Pesavento (2003) de que “história e literatura são formas distintas, porém
próximas, de dizer a realidade e de lhe atribuir/desvelar sentidos”. Publicado
por Érico Veríssimo em 1972, o romance é dividido em duas partes, sendo que na
primeira ele traça o panorama social e histórico da formação da fictícia cidade
de Antares interligando-o com a própria história do Rio Grande do Sul como já
fizera em O Tempo e o Vento utilizando
tal recurso. A relação do livro com a história, aliás, fica nítida com a
curiosa nota do autor na introdução ao romance: “neste romance as personagens e
localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que
as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram, são designados
por seus nomes verdadeiros”. Além disso, a proximidade entre história e
literatura não estará tão somente na relação entre contextos, interno e
externo, mas haverá no coração da narrativa até mesmo uma reflexão sobre a
memória e o registro da história, que geralmente esta alicerçada sob os
expurgos da violência e do caráter autoritário, como podemos observar:
A esta altura da presente
narrativa é natural que o leitor esteja inclinado a perguntar se não existiam
em Antares homens de bem e de paz, com comportamentos e sentimentos cristãos. A
pergunta é pertinente e a resposta, sem a menor dúvida, afirmativa. Havia, sim,
e muitos. Desgraçadamente, seus ditos, feitos e gestos não foram recolhidos
pela história oficial. (...) Os livros escolares, cujo objetivo é ensinar-nos a
história da nossa terra e do nosso povo, são em geral, escritos num espírito
maniqueísta, seguindo as clássicas antíteses – os bons e os maus, os heróis e
os covardes, os santos e os bandidos. (...) Via de regra, não se empregam
nesses compêndios as cores intermediárias, pois seus autores parecem desconhecer
a virtude dos matizes e o truísmo de que a história não pode ser escrita apenas
em preto e branco. (Veríssimo.p.24)
Se a perspectiva de uma leitura do
romance por seu viés da relação entre história e literatura já reúne elementos
de interesse, será, contudo, a segunda parte da narrativa que o incluirá no
grupo de escrita que caracterizou outros semelhantes de sua época. É nesta
parte que teremos narrado o incidente,
no caso, o desfile dos mortos insepultos que sem a possibilidade de serem
enterrados por causa de uma greve geral na cidade – da qual aderiram os
coveiros –, em uma sexta-feira 13 de dezembro de 1963 reúnem-se em pleno coreto
da praça central. Esse fato além de possibilitar incluir o romance dentro das
características das narrativas a ele contemporâneas, ou seja, o rompimento da
corrente realista optando pelo fantástico, também nos proporciona uma leitura a
partir do conceito de carnavalização
elaborado por Bahktin. Conforme Bahktin observou “o carnaval era o triunfo de
uma espécie de libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente,
a abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e
tabus” e é o que podemos perceber a partir do incidente – mas não somente
durante ele – com a “transposição do carnaval para a linguagem da literatura”
existente em Incidente em Antares.
Não poderíamos, aqui, sobre o respectivo
romance de Érico Veríssimo à luz da carnavalização, falar melhor do que o amplo
trabalho de Valeria Cristina da Silva que ao final conclui que “conseguimos,
por meio do carnaval, no que concerne ao último romance de Érico Veríssimo,
observar que este elemento se relaciona com diversos aspectos e temas da
narrativa”, porém, neste breve texto, voltaremos nossos olhares para o momento
em que talvez esteja mais intensificado o processo de carnavalização na
linguagem do romance, sendo também quando teremos nesta “libertação temporária”
uma reflexão bastante ácida e crítica sobre a constituição social.
A
praça pública tem especial importância para o carnaval, e é nela que se dá uma
das principais passagens do romance; é quando os mortos e vivos encontram-se
para uma espécie de julgamento de seus atos. Nesse processo os seis insepultos
liderados pelo quando vivo, advogado Cícero Branco, estão reunidos no coreto
sob os olhares da comunidade. A descrição narrativa soa como uma grande
pantomima, com os círculos sociais ao redor dos mortos e sobre as árvores, como
que se nas inquisições medievais, o povo jubila-se diante os ataques entre
mortos e vivos, mais especificamente com as acusações e as máscaras que caem
durante o ato. Todavia, há algumas peculiaridades e especificidades a se
observar, como a declaração de Cícero Branco, de que “a morte me confere todas
as imunidades, estou completamente fora do alcance das leis dos homens”, pois, ao
mesmo tempo que dá conta de sua situação específica e que reforça o processo de
carnavalização, também o aproxima do seu “eu” vivo, um advogado corrupto e
conhecedor dos caminhos da lei a ponto de o livrarem sempre das “garras da
justiça”, de modo que talvez seja entre os mortos o que mais mantenha-se como
era vivo, pois, ficará sempre a dúvida se as denúncias que fará o são pela nova
perspectiva de morto ou apenas pela certeza da inimputabilidade de seus crimes
confessos. Será este Cícero Branco o responsável por organizar o “carnaval” na
praça central onde virão a público as “podridões” da sociedade antarense, que
talvez melhor representação se dará na seguinte metáfora:
Nosso anarco-sindicalista acaba
de me soprar um “fecho de ouro” para minha metáfora do baile de máscaras...
Para vós o importante é que a festa continue, que não se toque na estrutura,
não se alterem os estatutos do clube onde os privilegiados se divertem. A
canalha que não pode tomar parte da festa e se amontoa lá fora no sereno
envergando a triste fantasia e a trágica máscara da miséria, deve permanecer
onde está, porque vós os convivas felizes achais que pobres sempre os haverá,
como disse Jesus. E por isso pagais a vossa polícia para que ela vos defenda no
dia em que a plebe decidir invadir o salão onde vos entregais às vossas danças,
libações, amores e outros divertimentos. (Veríssimo.p.344-345)
Contudo, é preciso lembrarmo-nos de que
o carnaval constitui-se de período específico e limitado de tempo, assim, a
destituição dos limites e ordenamento social é temporária, o que também
poderemos observar através do incidente.
O fato é datado e por diversos mecanismos, até mesmo posto em suspeição os
acontecimentos. Deste modo as denúncias das mazelas sociais além de datadas
estão sujeitas ao esmaecimento da memória. Deste modo, a carnavalização
permitiu uma pequena brecha, pela qual através das delações, as corrupções,
perversões e contradições antarenses pudessem vir à tona. Entretanto, a
sequência após o acontecido é talvez quando Érico Veríssimo demonstrará com
maior veemência o caráter autoritário e opressor do Estado de tal modo que se
construirão formas de apagar os fatos da lembrança coletiva. Para isso, o
círculo do poder não poderia confiar apenas no trabalho do tempo sobre a
memória, tendo de atura de forma ativa através da sugestiva “operação borracha”
que “continuava a despeito dos esforços em contrário feito pelas esquerdas e
pelas cartas anônimas”. Para este apagamento, especialistas foram levados a
cidade e colocaram os fatos em dúvida, a imprensa não publicou a verdade e a
própria sociedade foi organizando e reorganizando suas atividades sociais de
tal modo que “sete anos após aquela terrível sexta-feira 13 de dezembro de
1963, pode-se afirmar, sem nenhum risco ou exagero que Antares conseguiu
esquecer seu macabro incidente. Ou soube disfarçar muito bem.” De modo que a história então fosse apagando
aos poucos tal acontecimento enquanto a literatura o registrava.
Enfim, para finalizarmos estas
breves reflexões e comentários resumidos acerca destas três narrativas, entre
bois, muros e mortos insepultos, certamente não nos aprofundamos em demasia,
entretanto é possível termos uma compreensão das respectivas obras literárias
dentro das características de suas épocas; uma época em que se foi necessário
partir para o fantástico e para o “carnaval” rompendo com as realistas em parte
porque a realidade externa para poder ser analisada e discutida necessitava
deste rompimento de linguagem buscando-se outras formas de refletir o caráter
autoritário e opressivo do “mundo real” a que tais obras estavam submetidas.
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Em: Entrevista José J. Veiga, Revista Banzeiro. Disponível em
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Acesso: 25/11/2015.