quarta-feira, 12 de julho de 2017

Resumos: Entre bois, muros e mortos insepultos: três narrativas da geração da repressão.


Por Douglas Eralldo

A esta altura do curso Sob a égide do totalitarismo eautoritarismo: a literatura como reflexão  já passamos pela leitura, reflexões e interpretações de uma série de narrativas distópicas que dentre outras coisas, nos propiciaram olhares para os regimes totalitários, seu funcionamento, características, opressão e violência presentes em tais formas políticas em que o controle é total sobre o indivíduo. Para tanto, observamos um conjunto de leituras clássicas do gênero, em sua maioria romances estrangeiros, cabendo a Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão a obra nacional dentre as distopias analisadas. Agora, nesta etapa do projeto de extensão, nossos olhares estarão centrados na produção literária brasileira. Para isso, somando-se ao já citado romance de Loyola Brandão (cujos contos O Homem Com o Furo na Mão e Cadeiras Proibidas também foram trabalhados durante os encontros) incluiremos em nossas leituras e interpretações os romances A Hora dos Ruminantes e Sombras de Reis Barbudos, de José J. Veiga e Incidente em Antares, de Érico Veríssimo. Contudo, antes de nos dedicarmos a estas obras, faz-se importante observarmos alguns elementos de abordagem sobre autoritarismo e literatura brasileira.
Pensar literatura e autoritarismo no Brasil, nos leva de imediato a observarmos o trabalho de Jaime Ginzburg em que o autor reflete sobre Autoritarismo e Literatura: A História Como Trauma. Nesta sua produção o autor declara:

Alguns dos maiores escritores brasileiros se dedicaram a lidar com temas referentes a experiências de autoritarismo, violência e opressão. E alguns dentre eles abdicaram da perspectiva realista, que faz supor, conforme Ian Watt, uma capacidade de compreensão do objeto representado, em parâmetros documentais e ou racionais. Em vez dela, procuraram tensionar o limite entre realidade e imaginação, subverter parâmetros tradicionais, apontar ambivalências da linguagem, pautar a representação em contradições, romper, enfim, com os padrões tradicionais de entendimento e consciência da linguagem. (Ginzburg.p.50)

            Nessa perspectiva, o autor ainda observa e lembra-nos de que :

A crise do sujeito no Brasil, não se dá nas mesmas condições nem pelas mesmas razões que se dá em países europeus. A constituição do sujeito, contextualizada na formação social brasileira, é abalada desde suas bases pelo polo violento e destrutivo em que se desenvolve. (Ginzburg. p.45) 

Para construir seu pensamento acerca do trauma, literatura e história, Jaime Ginzburg – e nós aqui também – terá em conta a permanente presença do processo autoritário e da violência na formação social brasileira, que também nos é afirmada por Segatto:

Há um certo consenso na historiografia segundo o qual o processo histórico brasileiro caracterizou-se por ter sido marcadamente excludente e autoritário. (...) O Estado no Brasil, independente das formas e composições que assumiu nos diferentes momentos e períodos (Monarquia e República; imperial, oligárquico, corporativo, ditatorial, etc.) tem ao longo da história uma características essencial comum: de se impor autoritariamente sobre a sociedade civil. (...) A classe dominante sempre procurou rearticular e reorganizar as formas de dominação política e acumulação de capital para fazer frente aos crescentes antagonismos e contradições sociais que se acumulavam, como, também, para impedir que as classes subalternas subvertessem a ordem vigente e, ainda, para truncar sua participação no processo político (Segatto.p.201 e 214)

Observando as afirmações de Segatto, Ginzburg em seu trabalho ainda constitui um grupo de obras e autores observados e cita alguns dos grandes nomes da literatura Brasileira como Guimarães Rosa e Clarice Lispector, dentre outros que ser-lhe-ão exemplos e material de pesquisa para seus estudos. Neste texto, ao grupo citado por ele, incluiremos também José J. Veiga e Érico Veríssimo, por imaginarmos que a ambos também fazem jus ao que fala Ginzburg, estando inseridos num grupo de escritores que:

Elaboraram suas representações da condição humana acentuando seu caráter problemático e agônico, em acordo com o fato de que, no contexto histórico brasileiro, a constituição da subjetividade é atingida pela opressão sistemática da estrutura social, de formação autoritária. (Ginzburg. p. 44)
           
A partir disso traçando – e reconstituindo – um diálogo com pensadores como Benjamin, Adorno, Hobsbawn e Selligman, e tendo como horizonte histórico estas afirmativas de Segatto, Ginzburg falará então do trauma, sua relação e abordagem pela literatura e segundo ele:

Em um mundo marcado pela experiência radical da destruição, o trauma se torna um elemento constitutivo da formação social. Por ultrapassar nossos mecanismos de absorção e atribuição de legibilidade aos eventos, o trauma ultrapassa nossas referências de concepção de forma. O problema psicanalítico se torna, na reflexão de um autor, um problema estético. (Ginzburg.p.47)
           
Neste ponto da análise de Ginzburg estabelece-se então diálogo com o que diz Candido: “sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno”, e, portanto, conduz-nos a necessidade de observarmos justamente como o trauma externo e consequentemente nossa formação social e histórica reflete-se como elemento interno nas obras literárias. A partir deste ponto já podemos focalizar o contexto em que as três leituras abordadas neste texto estavam inseridas quando de suas publicações, entre os anos de 1966 e 1972. Sobre esse período Antonio Candido fala que:

O decênio de 1960 foi primeiro turbulento e depois terrível. A princípio, a radicalização generosa mas desorganizada do populismo, no governo João Goulart. Em seguida, graças ao pavor da burguesia e à atuação do imperialismo, o golpe militar de 1964, que se transformou em 1968 de brutalmente opressivo em ferozmente repressivo. (Candido. p.207)

Sobre a produção literária deste período Candido ainda dirá que “o timbre dos anos 60 e sobretudo 70 foram as contribuições de linha experimental e renovadora, refletindo de maneira crispada, na técnica e na concepção da narrativa, esses anos de vanguarda estética e amargura política”, sendo que o crítico sobre a época ainda dirá de suas características da produção literária:
           
Com relação aos que avultam no decênio de 70 pode-se falar em verdadeira, legitimação da pluralidade. Não se trata mais de coexistência pacífica das diversas modalidades de romance e conto, mas do desdobramento destes gêneros, que na verdade deixam de ser gêneros, incorporando técnicas e linguagens nunca dantes imaginadas dentro de suas fronteiras. Resultam textos indefiníveis: romances que mais parecem reportagens; contos que não se distinguem de poemas ou crônicas, semeados de sinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance; narrativas que são cenas de teatro; textos feitos com a justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte. (Candido.p.208)        

Numa observação que nos aproxima das narrativas abordadas neste texto, Antonio Candido ainda observará outra tendência das narrativas do que ele diz que se poderia chamar de “a geração da repressão”. Segundo Candido:

Outra tendência é a ruptura, agora generalizada, do pacto realista (que dominou a ficção por mais de duzentos anos), graças à injeção de um insólito que de recessivo passou a predominante e, como vimos, teve nos contos do absurdo de Murilo Rubião o seu precursor. Com certeza foi a voga da ficção hispano-americana que levou para este rumo o gosto dos autores e do público. (Candido.p.210)

Demonstrando toda a capacidade de observação e compreensão da nossa literatura, Candido além da falar do precursionismo de Murilo Rubião, não deixa, contudo, de demonstrar a relevância de José J. Veiga nesta mesma seara conforme podemos constatar em sua fala sobre a tendência dizendo que “os seus adeptos são legião, mas bem antes de a moda se instalar José J. Veiga tinha publicado Os cavalinhos de Platiplanto (1959) — contos marcados por uma espécie de tranqüilidade catastrófica”. É justamente sobre duas obras de José J. Veiga que passamos tratar a seguir.

Entre cachorros, bois e muros: o insólito de José J. Veiga  



 Como já observamos aqui, José J. Veiga publica seu primeiro livro de contos, Os Cavalinhos de Platiplanto em 1959 e nele já se encontram as principais características que vieram a marcar a produção literária do autor, inclusive as duas obras aqui analisadas, A Hora dos Ruminantes (1966) e Sombras de Reis Barbudos (1972). Se a primeira é publicada apenas dois anos após o golpe militar de 1964, a segunda o é em 1972, já tendo o autor passado pela vivência do recrudecimento da repressão imposta pelo regime militar, especialmente após o AI-5, em 1968 que significou uma restrição ampla dos direitos civis. Fazendo-se aqui a relativização da palavra do autor sobre sua própria obra, permitimo-nos dizer que o contexto externo estava no horizonte de Veiga como propulsor da sua narrativa conforme podemos observar em entrevista em que o autor fala sobre os dois romances e sobre a crítica que recebera pelo primeiro, por demonstrar-se otimista:

Ah, foi. Disseram isso a propósito do final do livro A hora dos ruminantes. Eu não acreditava que aquela ditadura tivesse condições de durar muito. Achei que ela ia se dissolver. Demorou muito mais do que eu esperava. Em A hora dos ruminantes, eu pensava que ela ia ser curta. Por isso aquele final otimista. Os ruminantes foram embora, deixaram a sujeira aí, mas a gente limpa. O relógio da igreja, que estava parado há muito tempo, enguiçado, foi consertado, bateu horas, todo mundo se animou. Fui muito criticado por alguns, que me acharam muito otimista. Daí eu fiz uma espécie de continuação em Sombras de reis barbudos, livro no qual a repressão e o esmagamento chegam ao auge. Mas no fim, pensando bem, a ditadura acabou como está em A hora dos ruminantes: saiu pela porta dos fundos, não foi? (Veiga.in: Revista Banzeiro)

Todavia, observar os dois romances como simples alegorias do regime militar seria um tanto restritivo (reflito sobreisto neste artigo), e como reforça Nepomucemo “cumpre repetir que as análises restritivas da obra de Veiga, que a têm identificado com panfleto contra a ditadura militar no Brasil, devem dar espaço a possibilidades mais amplas”, pois segundo ele é preciso observar na obra do autor como “a violência e o poder como um todo se expandem para um universo além dos limites da política e dos aparelhos do Estado”. Ademais, conforme podemos perceber na citação abaixo, o próprio autor é capaz de demonstrar grande consciência entre os limites do mero panfletarismo e a obra de arte:

É claro que Sombras, Os Pecados, Vasabarros foram contaminados pelo clima político contemporâneo deles, e a coincidência entre o clima interno e externo facilitou a leitura política. Mas meu projeto de escrevê-los não era ficar na mera denúncia de um regime de opressão: se fosse, os livros ficariam datados quando o regime exaurisse, como se exauriu (aliás, durou mais do que eu calculava). O meu projeto era mostrar situações mais profundas do que aquelas impostas por governinho de uns generaizinhos... (Veiga apuda Roncari.p.17)

Se até aqui conseguimos observar então a relação e a experiência entre autor e contexto, não nos demoremos então a adentrarmos o universo de Veiga a partir de seu A Hora dos Ruminantes, romance que conforme Antonio Arnoni Prado “estende a ação das personagens para muito além dos limites possíveis de uma simples resposta às implicações  do estranho pela chegada dos misteriosos cargueiros”. A chegada, aliás, é a primeira das três partes do romance. As outras são: Os dias dos cachorros e O dia dos bois. Nesta primeira parte do livro temos a chegada à Manarairema – cidade que ganha tons de personagem – do grupo de homens que monta acampamento em um terreno abandonado. Tal chegada inicialmente é fruto da curiosidade dos habitantes da bucólica cidadezinha, e os estranhos passam a existir então na curiosidade dos locais sobre os recém chegados que passarão a ser chamados também de Homens da Tapera. Entretanto, inicialmente não há contato entre os moradores de Manarairema e os viajantes, estes, aliás, não demonstram nenhuma necessidade de aproximação aos moradores do lugar, tanto que a primeira tentativa de encontro feita pelo padre local é completamente ignorada. Sobre a relação então estabelecida entre os manarairenses e os viajantes Prado irá dizer:

Vista em perspectiva, a vida em Manarairema, depois deles, se acelera: pessoas perguntam pelos estranhos visitantes, há gente que não dorme, que os vigia de longe, que pergunta pelas ruas, que recebe informes suspeitos, mas a verdade é que, no limite, afora uns breves e atrevidos contatos, aqueles homens, a rigor não se constituem numa grave ameaça. No fundo, eles só se justificam na trama como signo de motivação literária que ganham importância na mediada em que desencadeiam uma reação coletiva que enriquece de temas e de cores, de episódios e de descrições paralelas os bastidores de uma realidade social entorpecida pela miséria e o esquecimento. (Prado.p.15-16)

Mas se Prado acerta ao dizer do processo de aceleração dada a partir da chegada dos visitantes, por outro talvez minimize o risco representado por tais viajantes, conforme podemos ver a partir da invasão de cachorros em O Dia dos Cachorros:  “O derrame de cachorros foi o primeiro sinal forte de que os homens não eram aqueles anjos que Amâncio estava querendo impingir”. Assim, ao final da primeira parte do romance, exceto contatos pontuais “das intenções dos homens, de sua ocupação verdadeira a cidade continuava na mesma ignorância do primeiro dia”. Contudo, se as intenções ou mesmo quem eram de fato os visitantes misteriosos eram desconhecidas, não se poderia deixar de observar, por exemplo, que já estava em movimento o processo de transferência de autoridade local. Até aí, Amâncio, dono de um armazém, já se constituía como propagandista dos homens da tapera e suas ideias, ainda que nem ele e nem os homens dissessem quais eram, e Geminiano já sofria a opressão do trabalho prestado aos viajantes conforme explica Dildélio sobre o fato:

“Cada um sabe onde morde o borrachudo. (...) Se ele ainda não largou  é porque não pode. Ele deve estar passando horrores. Não notaram como mudou? Esse Geminiano aí não é mais aquele antigo; e esse de hoje, amanhã será outro se não parar.” (Veiga.p.57)

Se na primeira parte temos então estes contatos iniciais, a partir do Dia dos Cachorros e o suposto derrame patrocinado pelos homens da tapera se iniciará um processo de subjugação pelo medo e pela desconfiança, estando já quase toda a população de Manarairema em lado oposto ao dos visitantes, agora oprimidos e já sob a autoridade dos estrangeiros. Para isso a invasão dos cachorros cumpre papel fundamental:

A vaga de pelos, de dentes, de patas, de rabos, de uivos chegou inteira e logo se espalhou por toda a parte farejando, raspando, acuando, regando pedras, barrancos, muros, raízes de árvores, unhando portas, choramingando, erguendo-se nas patas traseiras para ver se descobriam nas salas alguma coisa digna de atenção. (Veiga.p.60)

            Assim, os cães tornam-se agentes de vigilância e repressão que sob os olhos, imaginação e desconfiança das pessoas de Manarairema estão a serviço dos homens da tapera. Além disso, as pessoas “fechadas em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as pessoas tapavam os ouvidos, pensavam que não conseguiam compreender aquela inversão da ordem” sendo que a partir deste momento “a ordem era respeitar os cachorros” num período que o narrador irá dizer que “foi um tempo difícil aquele para os puros, os ingênuos, os de boa memória”. Além disso, não podemos negligenciar a capacidade dos homens da tapera em impor o medo, a tal ponto que este, o medo, é perceptível na voz de Amâncio Mendes cuja crítica às vezes simplifica apontando-o como representação de um sujeito adepto aos ideais totalitários, sem observar que há algo com os homens que é capaz de controlar este que até então sempre fora o valentão da cidade, mas que aqui revela-se plenamente subjugado pela autoridades dos estrangeiros:

Aí é que está o seu erro. Você fala como se não tivesse acontecido nada. Direitos? Que direitos! Quem não deve não teme! Tudo isso já morreu. Hoje em dia não é preciso dever para temer. Por que é que você acha que eu estou aqui pedindo, implorando, me rebaixando? Eu devo alguma coisa? E você já me viu com medo algum dia? Você precisa entender que não estamos mais naquele tempo... (Veiga.p,74)

Até aí apenas Apolinário, homem de brio e pai do garoto Mandovi conseguiu estabelecer relativa resistência à pressão exercida pelos homens da tapera, chegando-se ao fim da segunda parte do romance com um cenário em que:

Só as crianças estavam refugando as novidades trazidas pelos homens da tapera. A Gente grande era cheia de prudências, de conveniências, de esperanças de vantagens, ou então simples medo. Pessoas como Apolinário eram raras, e ficavam sozinhas, até as famílias vinham dar aqueles conselhos moles, baseados no olha-lá, pense-bem, é-melhor-ceder. (Veiga.p.117)

Entretanto nem mesmo a subjugação da sociedade de Marairema conforme podemos observar acima foi capaz de estancar o movimento do poder estabelecido no romance, que ainda usaria de mais violência para sua manutenção com O Dia dos Bois, terceira e última parte da narrativa que nos revela um processo gradual de invasão começando lentamente: “fazia dias que os bois vinham aparecendo aqui, ali, nas encostas da serra, nas várzeas, na beira das estradas...” até a tomada completa do espaço-ambiente:

Durante o resto do dia e ainda por toda a noite mais bois chegaram, pisando em tudo, derrubando casa de pobres, invadindo corredores de ricos, espremendo-se uns contra os outros, as cabeças levantadas para os chifres não se embaraçarem, sem espaço nem para erguer o rabo na hora de defecar, a matéria saindo forçada pelas pernas abaixo, breando tudo. (Veiga.p.119)

A partir desse momento a população de Manarairema estará totalmente sitiada, “vivendo como prisioneiros em suas próprias casas” as pessoas só conseguiam comunicar-se graças a agilidade “dos meninos” que conseguiam locomover-se por sobre os bois e além de fazer transitar a informação, também trocar recursos e parcos mantimentos. É, todavia, um movimento clandestino perigoso o dos meninos e sempre cada novo dia mais e mais difícil. Então após dias da presença dos bois, tinha-se então um cenário desolador cuja violência extrapolara até mesmo os limites da verossimilhança esgarçando o espaço e a população local relatando das mortes por pisoteamento, a cidade destruída até o ponto em que o sitiamento atinge seu auge com:

Os meninos não apareciam mais em suas missões de estafetas, deviam estar famintos, prostrados. Sentia-se que a cidade morria quietamente em toda a parte. O relógio da igreja não batia mais, o peso da pedra que rodava o mecanismo da corda devia estar descansando no fundo do poço da torre, ninguém subiria mais a escada escura para girar a manivela e erguer a pedra. (...) Enfraquecidas pela fome e pelos vômitos frequentes, as pessoas passavam a maior parte do tempo deitas, caladas, olhando as telhas, as paredes, sem ânimo até para pensar. (Veiga.p.130)

Mas ao fim, os bois somem tão misteriosamente quanto chegaram, os estrangeiros vão embora e na cidade “ninguém quis perder tempo falando nos homens da tapera, se alguém se lembrou deles foi de passagem, o momento era alto de mais para miudezas, agora era festejar e tocar para frente” num desfecho que provoca todas as discussões acerca do otimismo de José J. Veiga e da própria forma de resistência demonstrada pelos habitantes da cidade, que demandaria por sua vez, uma abordagem específica. Todavia, esse final otimista – ou esperançoso – construído por Veiga seria modificado em Sombras de Reis Barbudos que segundo Roncari “não é tão conhecido quanto A Hora dos Ruminantes, livro que mais identifica o autor, mas sob alguns aspectos, é mais bem acabado”. Como justificativa para tal pensamento, Luiz Roncari aponta três elementos distintivos, a definição de um narrador subjetivo, no caso o jovem Lucas, a atenuação dos contrastes entre o regional e o insólito, e por fim, “o peso maior dos elementos de contextos, histórico e literários, nas definições estilísticas e ficcionais do autor”.
E logo em suas primeiras palavras Sombras de Reis Barbudos (1972) o leitor será tanto apresentado a seu narrador e as motivações de sua escrita como terão acesso à informação de que se ainda abrandada, o autoritarismo e a opressão não se extinguem com a última página do romance, além de descrever o ambiente desolado que é o resultado da história que ele se propõe a narrar:

Está bem, mãe. Vou fazer sua vontade. Vou escrever a história do que aconteceu aqui desde a chegada de Tio Baltazar. Sei que esse pedido insistente é um truque para me prender em casa, a senhora acha perigoso eu ficar andando por aí mesmo hoje, quando os fiscais já não fiscalizam com tanto rigor. Talvez seja mesmo uma boa maneira de passar o tempo, já estou cansado de bater pernas pelos lugares de sempre e só ver tristeza de casas vazias, janelas e portas batendo ao vento, mato crescendo nos pátios antes tão bem tratados, lagartixas passeando atrevidas até em cima dos móveis, gambás fazendo ninhos nos fogões apagados, se vingando do tempo em que corriam perigo até no fundo dos quintais. (Veiga.p.21)

Contrastando com a cena de desolação descrita pelo narrador Lucas, sua história contará da criação da Companhia de Melhoramentos de Taitara, projeto idealizado por Tio Baltazar e que “teria levado às nuvens” o próprio pai de Lucas e cujas intenções não explícitas, mas implícitas é de que trariam progresso e alegria para a população de Taitara. Todavia, a leitura alegórica se faz importante neste romance de José J. Veiga e tanto a Companhia quanto os acontecimentos desenrolados a partir de então estão sob a luz difusa dos mistérios e das camadas que envolvem a narrativa e suas personagens. Isso porque através desse narrador subjetivo se provoca o leitor a embrenhar-se justamente pelos não-ditos, como os rancores entre o pai de Lucas e Tio Baltazar e também a relação entre o garoto e Tia Dulce que aproximam a obra ao romance de formação neste ponto, especificamente.
Estabelecida a Companhia que para alguns críticos pode ser vista como representação de um governo totalitário, o processo de afirmação de sua presença perante os habitantes de Taitara vai se dar sempre sob o signo do mistério visto que sua efetiva função e mesmo seus verdadeiros “donos” permanecem em mistério como vemos na fala de pai de Lucas já dando uma prévia dos movimentos que levariam ao “golpe” contra Tio Baltazar “pessoas influentes podem achar que ele não é tão competente assim. Fique sabendo, Vi, que nem tudo são flores lá na Companhia. Seu irmão Baltazar não manda sozinho. Não se assuste se as coisas mudarem”. As coisas realmente mudaram e:

De repente os muros, esse muros. Da noite para o dia eles brotaram assim retos, curvos, quebrados, descendo, subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o traçado, separando amigos, tapando vistas, escurecendo, abafando. (...) Com tanto muro para encarar quando estávamos parados e rodear quando tínhamos de andar, a vida estava ficando cada dia mais difícil. (Veiga.p.42-43)

Aqui, vejamos, já temos a subtração de qualquer normalidade, com a liberdade restringida e as ações da Companhia dando demonstrações de “sua política”, contudo, segundo o narrador Lucas “aqui em casa até que ainda não podíamos nos queixar. Além de não ser despedido, meu pai ainda foi promovido a fiscal”. O pai de Lucas por sinal será um adepto vigoroso da política da Companhia e dos ideais totalitários da Companhia como demonstra em uma discussão com a esposa:

Veja lá como fala. (...) A Companhia trabalhando sem descanso em benefício de todos, e tratada dessa maneira. E logo por quem! Pela mulher de um fiscal. Você devia agradecer à Companhia todos os dias pela vida que leva. Você está cuspindo no prato que come. Você fala é de mágoa porque puseram seu querido irmão para fora. (...) A Companhia não maltrata ninguém, isso é uma campanha de desmoralização que andam fazendo, mas os responsáveis serão apanhados. [Grifos meus] (Veiga.p.67)

Mas por mais que o pai tentasse argumentar, esconder o caráter autoritário, totlitário e opressor da Companhia é praticamente impossível. Sua política, além da restrição da liberdade, as restrições do ir e vir está calcada na repressão e nas proibições. É o que ocorre em relação aos urubus que atraem a atenção dos moradores. “De repente a Companhia resolveu apertar a rosca contra os urubus. Eles não seriam mais tolerados nas ruas, e quem quisesse ter um urubu em casa teria de registrá-lo”. A natureza proibitiva da Companhia revela-se também na relação construída entre a cidade e o mágico Uzk. Ela, primeiramente tenta evitar que ele venha para cidade. Depois o mago acaba distraindo os moradores dos problemas com a Companhia e ao final a Companhia “caprichou na vingança pelos dias encantados” que Lucas diz ter a cidade passado com o mágico, e “proibições e exigências há muito tempo esquecidas foram desarquivadas e aplicadas de novo com um rigor nunca visto antes”. Conforme conta o narrador “ficou perigoso até perguntar as horas na rua”.
Na verdade, há durante o acontecer narrativo uma adequação da Companhia e do poder que manifesta e exerce e um contra-ataque a qualquer esperança ou sonhos de liberdade que brotem nos habitantes de Taitara, através das alegorias que incutem no romance o insólito e o fantástico. Podemos observar isso quando as pessoas começam a observar pessoas voando pelo céu. “Enquanto o povo se divertia o dia inteiro olhando para o céu agora coalhado de gente voando... a Companhia preparava seus planos”. O plano em questão foi proibir que se olhasse para o alto, e para que se cumprisse a proibição “a Companhia tinha se aparelhado em todos os sentidos... (...) O jeito era obedecer, e andar de cabeça baixa para evitar mal-entendidos” confessa o narrador que no final, que mesmo demonstrando a saturação do regime, relata ainda a presença incômoda e opressiva da Companhia:

De vez em quando a Companhia acorda e organiza desfiles de funcionários com bandas de música e foguetes, carros com alto-falantes rodam por aí fazendo barulho como antigamente em época de eleição, e isso em vez de animar, como parece ser o objetivo, entristece mais porque traz saudade. Os próprios funcionários sopram os instrumentos e malham as zabumbas com aquela moleza de quem trabalha a contragosto, pensando em outra coisa. Passado o desfile, o silêncio volta com mais peso. (Veiga.p.142)

Assim, ao contrário do “otimismo” e clima de festejo do final de A Hora dos Ruminantes, Sombras de Reis Barbudos ganha força pelo enigma, por suas referências e  algo poderoso que exerce o obscuro representado aqui pelos reis barbudos e todas as relações polifônicas que evocam. Ademais, ao final, o relembrar de Lucas ainda deixa tudo em suspenso porque não há o que comemorar já a Companhia ainda persiste e a resistência ocorre em suas distintas formas.

No coreto da praça, a carnavalização dos mortos insepultos

 Cena de série homônima adaptada para televisão

Uma leitura de Incidente em Antares provavelmente poderá nos levar ao que diz Pesavento (2003) de que “história e literatura são formas distintas, porém próximas, de dizer a realidade e de lhe atribuir/desvelar sentidos”. Publicado por Érico Veríssimo em 1972, o romance é dividido em duas partes, sendo que na primeira ele traça o panorama social e histórico da formação da fictícia cidade de Antares interligando-o com a própria história do Rio Grande do Sul como já fizera em O Tempo e o Vento utilizando tal recurso. A relação do livro com a história, aliás, fica nítida com a curiosa nota do autor na introdução ao romance: “neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram, são designados por seus nomes verdadeiros”. Além disso, a proximidade entre história e literatura não estará tão somente na relação entre contextos, interno e externo, mas haverá no coração da narrativa até mesmo uma reflexão sobre a memória e o registro da história, que geralmente esta alicerçada sob os expurgos da violência e do caráter autoritário, como podemos observar:

A esta altura da presente narrativa é natural que o leitor esteja inclinado a perguntar se não existiam em Antares homens de bem e de paz, com comportamentos e sentimentos cristãos. A pergunta é pertinente e a resposta, sem a menor dúvida, afirmativa. Havia, sim, e muitos. Desgraçadamente, seus ditos, feitos e gestos não foram recolhidos pela história oficial. (...) Os livros escolares, cujo objetivo é ensinar-nos a história da nossa terra e do nosso povo, são em geral, escritos num espírito maniqueísta, seguindo as clássicas antíteses – os bons e os maus, os heróis e os covardes, os santos e os bandidos. (...) Via de regra, não se empregam nesses compêndios as cores intermediárias, pois seus autores parecem desconhecer a virtude dos matizes e o truísmo de que a história não pode ser escrita apenas em preto e branco. (Veríssimo.p.24)

Se a perspectiva de uma leitura do romance por seu viés da relação entre história e literatura já reúne elementos de interesse, será, contudo, a segunda parte da narrativa que o incluirá no grupo de escrita que caracterizou outros semelhantes de sua época. É nesta parte que teremos narrado o incidente, no caso, o desfile dos mortos insepultos que sem a possibilidade de serem enterrados por causa de uma greve geral na cidade – da qual aderiram os coveiros –, em uma sexta-feira 13 de dezembro de 1963 reúnem-se em pleno coreto da praça central. Esse fato além de possibilitar incluir o romance dentro das características das narrativas a ele contemporâneas, ou seja, o rompimento da corrente realista optando pelo fantástico, também nos proporciona uma leitura a partir do conceito de carnavalização elaborado por Bahktin. Conforme Bahktin observou “o carnaval era o triunfo de uma espécie de libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente, a abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus” e é o que podemos perceber a partir do incidente – mas não somente durante ele – com a “transposição do carnaval para a linguagem da literatura” existente em Incidente em Antares.
Não poderíamos, aqui, sobre o respectivo romance de Érico Veríssimo à luz da carnavalização, falar melhor do que o amplo trabalho de Valeria Cristina da Silva que ao final conclui que “conseguimos, por meio do carnaval, no que concerne ao último romance de Érico Veríssimo, observar que este elemento se relaciona com diversos aspectos e temas da narrativa”, porém, neste breve texto, voltaremos nossos olhares para o momento em que talvez esteja mais intensificado o processo de carnavalização na linguagem do romance, sendo também quando teremos nesta “libertação temporária” uma reflexão bastante ácida e crítica sobre a constituição social.
 A praça pública tem especial importância para o carnaval, e é nela que se dá uma das principais passagens do romance; é quando os mortos e vivos encontram-se para uma espécie de julgamento de seus atos. Nesse processo os seis insepultos liderados pelo quando vivo, advogado Cícero Branco, estão reunidos no coreto sob os olhares da comunidade. A descrição narrativa soa como uma grande pantomima, com os círculos sociais ao redor dos mortos e sobre as árvores, como que se nas inquisições medievais, o povo jubila-se diante os ataques entre mortos e vivos, mais especificamente com as acusações e as máscaras que caem durante o ato. Todavia, há algumas peculiaridades e especificidades a se observar, como a declaração de Cícero Branco, de que “a morte me confere todas as imunidades, estou completamente fora do alcance das leis dos homens”, pois, ao mesmo tempo que dá conta de sua situação específica e que reforça o processo de carnavalização, também o aproxima do seu “eu” vivo, um advogado corrupto e conhecedor dos caminhos da lei a ponto de o livrarem sempre das “garras da justiça”, de modo que talvez seja entre os mortos o que mais mantenha-se como era vivo, pois, ficará sempre a dúvida se as denúncias que fará o são pela nova perspectiva de morto ou apenas pela certeza da inimputabilidade de seus crimes confessos. Será este Cícero Branco o responsável por organizar o “carnaval” na praça central onde virão a público as “podridões” da sociedade antarense, que talvez melhor representação se dará na seguinte metáfora:

Nosso anarco-sindicalista acaba de me soprar um “fecho de ouro” para minha metáfora do baile de máscaras... Para vós o importante é que a festa continue, que não se toque na estrutura, não se alterem os estatutos do clube onde os privilegiados se divertem. A canalha que não pode tomar parte da festa e se amontoa lá fora no sereno envergando a triste fantasia e a trágica máscara da miséria, deve permanecer onde está, porque vós os convivas felizes achais que pobres sempre os haverá, como disse Jesus. E por isso pagais a vossa polícia para que ela vos defenda no dia em que a plebe decidir invadir o salão onde vos entregais às vossas danças, libações, amores e outros divertimentos. (Veríssimo.p.344-345)

Contudo, é preciso lembrarmo-nos de que o carnaval constitui-se de período específico e limitado de tempo, assim, a destituição dos limites e ordenamento social é temporária, o que também poderemos observar através do incidente. O fato é datado e por diversos mecanismos, até mesmo posto em suspeição os acontecimentos. Deste modo as denúncias das mazelas sociais além de datadas estão sujeitas ao esmaecimento da memória. Deste modo, a carnavalização permitiu uma pequena brecha, pela qual através das delações, as corrupções, perversões e contradições antarenses pudessem vir à tona. Entretanto, a sequência após o acontecido é talvez quando Érico Veríssimo demonstrará com maior veemência o caráter autoritário e opressor do Estado de tal modo que se construirão formas de apagar os fatos da lembrança coletiva. Para isso, o círculo do poder não poderia confiar apenas no trabalho do tempo sobre a memória, tendo de atura de forma ativa através da sugestiva “operação borracha” que “continuava a despeito dos esforços em contrário feito pelas esquerdas e pelas cartas anônimas”. Para este apagamento, especialistas foram levados a cidade e colocaram os fatos em dúvida, a imprensa não publicou a verdade e a própria sociedade foi organizando e reorganizando suas atividades sociais de tal modo que “sete anos após aquela terrível sexta-feira 13 de dezembro de 1963, pode-se afirmar, sem nenhum risco ou exagero que Antares conseguiu esquecer seu macabro incidente. Ou soube disfarçar muito bem.”  De modo que a história então fosse apagando aos poucos tal acontecimento enquanto a literatura o registrava.

            Enfim, para finalizarmos estas breves reflexões e comentários resumidos acerca destas três narrativas, entre bois, muros e mortos insepultos, certamente não nos aprofundamos em demasia, entretanto é possível termos uma compreensão das respectivas obras literárias dentro das características de suas épocas; uma época em que se foi necessário partir para o fantástico e para o “carnaval” rompendo com as realistas em parte porque a realidade externa para poder ser analisada e discutida necessitava deste rompimento de linguagem buscando-se outras formas de refletir o caráter autoritário e opressivo do “mundo real” a que tais obras estavam submetidas.
  


Bibliografia

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BATALHA, Maria Cristina (org). O Fantástico Brasileiro: Contos Esquecidos. Rio de Janeiro, Editora Cetés, 2011.
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GINZBURG, Jaime. Autoritarismo e Literatura: A História Como Trauma. 2000.
SANTIAGO, Silviano. Repressão e censura no campo das artes na década de 70. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 1982.
SEGATTO, Jose Antonio. Cidadania e Ficção. In: Sociedade e Literatura no Brasil. Unesp: 1999.
SILVA, Maria Valeria. O carnaval de Antares: Fantástico e a carnavalização literária em Incidente em Antares. Universidade Federal de São Carlos, 2014.
VEIGA, J. José. A Hora dos Ruminantes: Compainha das Letras, São Paulo, 2015.
________. Sombras de Reis Barbudos: Compainha das Letras, São Paulo, 2015.

________. Em: Entrevista José J. Veiga, Revista Banzeiro. Disponível em <http://banzeirotextual.blogspot.com.br/2010/03/jose-j-veiga-entrevista.html> Acesso: 25/11/2015.

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