Espaço para postagens de resenhas críticas elaboradas com o intuito de divulgar opiniões e fomentar a discussão acerca da produção literária contemporânea.
Courtney Brown
"Self Organization",
aka, The octopus sculpture
Bronze, 3'x3', found typewriter
Professor, Colegas, compartilho introdução do meu ensaio. Como ficou longo, segue link abaixo para leitura completa.
É preciso observar com bastante cautela a afirmação do professor Miguel Sanches Neto sobre Que Fim Levou Juliana Klein?, de Marcos Peres (Record, 2015, 352 páginas): “(…) desta narrativa que se vale da gramática do romance policial para cifrar uma sequência de rivalidades”. O excerto encontra-se no texto de orelhas com o título de “romance de rivalidades” e sugere que a publicação trata-se de uma típica obra do gênero policial. Essa afirmação de que o livro se insere entre os romances policiais têm recebido a adesão de muitos resenhistas sem maiores contestações; é o caso Eurídice Figueiredo que num texto especial para A Folha de São Paulo atesta “(…)é um romance policial que tem como protagonista Irineu, um delegadoque apura uma série de crimes em 2005, 2008 e 2011 em Curitiba.”; Seguindo a mesma essa linha de raciocínio, o professor Rodrigo Petrônio diz “(…)Peres se mostra um bom romancista policial que fornece falsas pistassobre o próprio romance” em texto publicado no site do Jornal Estadão. No entanto, tais afirmações carecem de reflexões mais precisas e que não se deixem cair na simplificação de determinar sua inscrição no gênero, sem ao menos questioná-la...
Link para texto completo: http://www.douglaseralldo.com.br/2015/11/romance-policial-ou-literatura-um-olhar.html
Postarei, com muito atraso, minha resenha crítica da obra "Mãos de Cavalo", de Daniel Galera, por partes, pra caber nos comentários.
A linguagem cinematográfica e a construção de personagens de Daniel Galera através de “Mãos de cavalo” e outras obras.
A obra “Mãos de Cavalo” (2006), de Daniel Galera, é o terceiro romance publicado pelo autor nascido em São Paulo, mas radicado em Porto Alegre, e filho de pais gaúchos. E é exatamente na capital gaúcha que é ambientada a narrativa em questão. O romance divide a história de Hermano, personagem principal, entre sua juventude e a vida adulta, e apresenta os momentos marcantes dessas duas etapas, conectando-as diretamente. A história da juventude de Hermano se passa no Bairro Esplanada, onde ganhou o apelido de “Mãos de Cavalo” - título da obra - devido à sua compleição física, especialmente os braços e mãos muito compridos em relação ao corpo. É também na juventude que os personagens secundários mais importantes são apresentados, Bonobo e sua irmã Naiara. Bonobo, que é apresentado ao leitor como um brutamontes brigão, sempre envolvido em alguma confusão e resolvendo suas questões com violência, acaba tornando-se próximo de Hermano e exerce certo fascínio sobre a personagem principal. E Naiara, irmã de Bonobo, torna-se a personagem feminina mais relevante da juventude de Hermano (e de toda a história) e seu primeiro contato com o sexo (essa passagem analisaremos com mais profundidade mais adiante). Na fase adulta de Hermano, ele já é um cirurgião plástico renomado, casado e com uma filha. A mulher e a filha tem pouquíssima participação na história, ficam em segundo plano até em relação à Renan, instrutor de academia e amigo de Hermano, com quem viaja para praticar alpinismo e também pouco participa dos acontecimentos da narrativa. O romance aponta o fascínio de Hermano pela violência, pelo sangue, a busca por correr riscos, em contraste com a sua covardia sempre que um embate físico era sinalizado. Dessa forma, quando ele e Bonobo são perseguidos e o amigo é morto por vingança enquanto Hermano se esconde, é o desfecho da narrativa para a fase jovem, o fim da inocência do protagonista. No desfecho do livro, Hermano, com viagem marcada até a Argentina com Renan, para uma escalada, desvia o caminho do sítio do amigo e vai passear no bairro de sua infância. Lá se depara com um grupo de garotos que persegue um terceiro, e enfim, descendo do carro com uma corda de alpinismo como arma, defende o garoto em apuros entre socos e golpes de telha, exorcizando assim a covardia que o marcou desde o fim de sua juventude até aquele exato momento. Galera divide o livro em capítulos, fora da ordem cronológica. Intercala os episódios da juventude e da vida adulta e consegue criar dessa forma um suspense que prende o leitor. Essa forma cronologicamente deslocada com que o autor escreve a obra é marca clara da linguagem cinematográfica a que nos referimos, remetendo diretamente à obras como “Cães de Aluguel” (1992) e “Pulp Fiction” (1994), ambas de Quentin Tarantino. E aqui um adendo elogioso ao escritor: Galera desloca a continuidade cronológica de modo a identificarmos a densidade da personagem, seus anseios e medos, a construção interna que forma Hermano com e sem a maturidade da fase jovem ou adulta, enquanto Tarantino produz em sua obra uma história rasa e reta, uma forma de parecer ao espectador que ele está pensando por si, criando efeito psicológico, quando de fato está apenas encaixando uma história divertida, mas simples e retilínea. Algo como um quebra-cabeças.
“É como se houvesse câmeras escondidas atrás dos postes registrando sua tenacidade física” – de uma correspondência com a representação possibilitada pelo cinema e essa estratégia pode ser diretamente relacionada à segunda questão presente em Mãos de Cavalo a ser enfocada na presente análise: a apropriação da linguagem cinematográfica, evidenciada não só por meio de técnicas, mas também de referências diretas. Desde a epígrafe – “Eu caminhava para a escola e ia imaginando planos em que uma grua subia aos poucos e me via lá embaixo como um pequeno objeto no meio da rua, caminhando para a escola.” –, uma frase do ator Nicolas Cage, até a recorrente referência à relação entre as experiências de Hermano e uma suposta câmera, presente em vários momentos do livro, como na passagem reproduzida a seguir: 'Às vezes a câmera surgia nos instantes cruciais de sua existência, às vezes captava a realidade de momentos banais e solitários, quando estava correndo em Ipanema e começava a chover, quando descia do ônibus e entrava pelo portão da frente do colégio, quando andava de bicicleta em alta velocidade, por horas a fio, atravessando diversos bairros da cidade, ou quando subia o Morro da Polícia como se estivesse sozinho, praticamente ignorando a companhia dos amigos, pois havia apenas ele, o morro e a câmera. Não era simplesmente sentir-se observado, imaginar testemunhas indefinidas pra cenas de sua vida. Era como se ele mesmo se destacasse do corpo para se tornar o observador da cena.' "
Ou seja, Galera não se envergonha disso, usa como artifício, abusa desse aspecto cinematográfico de alto realismo na sua escrita, o que não pode representar um defeito da obra e sim o estilo do autor. O marcado detalhismo na descrição de pessoas e lugares é ponto forte e muito celebrado em obras da escola Romântica - como em José de Alencar, por exemplo - o que Galera faz muito bem, embora na descrição das ações. O autor usa de uma escrita moderna, quebra certos padrões, como muitos autores hoje canônicos e que sofreram críticas severas à época por romperem com certo modelo. Evidente que não venho aqui dizer que Galera será o novo Machado de Assis, que sua escrita moderna será reconhecida como a de “Macunaíma” (Mário de Andrade), mas a história da literatura brasileira deixa claro que não podemos fechar os olhos para o novo, para o diferente. Que o cânone de hoje foi criticado no passado sabemos, e só o tempo dirá o que Daniel Galera representará para a literatura anos adiante. Mas uma linguagem nova não pode representar um defeito de escrita, como diz novamente, Laura Assis:
Se a imagem é considerada na cultura contemporânea como mais autêntica e detentora de uma maior legitimidade do que o texto, buscar construir visualidades por meio da literatura aparece, portanto, como uma estratégia que segue justamente a lógica de aproximar ficção e realidade, em busca de uma elaboração verossímil do mundo, espelhando a busca pela experiência autêntica e transformando, assim, a própria busca também em matéria representável.
Para finalizar, expresso o que considero ainda o calcanhar de Aquiles do autor: a construção das personagens. É claro que a imaturidade de Hermano adulto, por vezes, é estratégico, representa as lacunas emocionais que resultaram os acontecimentos que marcaram sua juventude. A falta de respeito por si, mesmo tendo uma vida exemplar, com família constituída e renome numa profissão de prestígio e alto retorno financeiro, o alpinismo que se tornou hobby como uma fuga da vida perfeita que acha que não merece, até o momento em que expulsa seus demônios. Também é interessante a "transcendentalidade" da personagem Bonobo. O garoto morre em "Mãos de Cavalo" e aparece um personagem com o mesmo nome (apelido), tipo físico, personalidade e origem em "Barba Ensopada de Sangue", que mal consegue explicar sua conversão ao budismo e fala em imortalidade e reencarnação. Em certa passagem diz não saber se ainda estaria vivo se levasse a vida como em sua juventude, na zona sul de Porto Alegre. Mas há incongruências claras na construção psicológica das personagens que soam quase inverossímeis, e também uma dificuldade do autor em sair de sua zona de conforto, algo que até melhorou em "Barba Ensopada de Sangue", todavia continua falho. Galera desespera-se tanto para dar densidade às suas personagens que cria personagens inverossímeis em situações que se tornam, consequentemente, inverossímeis, como na passagem em que detalha o que seria a primeira relação sexual de Hermano, um garoto virgem de 15 anos que se encontra sozinho em um quarto com uma garota bonita disposta a fazer sexo com ele, e de repente acaba encontrando prazer não em uma relação convencional, mas em mordidas tão fortes a ponto de tirar sangue. Ora, entendemos que Hermano tem apreço pela dor, a violência e o sangue são temas que perpassam toda a narrativa, mas soa por demais forçado dar essa maturidade sexual a um garoto de 15 anos que nunca teve relações sexuais. Além do mais, o que há de elogioso na retomada de Bonobo, torna-se defeito quando não intencional. O homem jovem, deslocado e blasè, bonitão e inteligente, que sempre tem facilidade com mulheres e as trata com desdém, é sempre o mesmo, seja ele Hermano em "Mãos de Cavalo", o recém formado em Letras desempregado vivendo com ajuda dos pais de "Até o Dia Em Que o Cão Morreu" ou o professor de natação e atleta que não reconhece rostos e muda-se para Garopaba em busca de revelações sobre a história do avô de "Barba Ensopada de Sangue". Os mesmos traços de personalidade, os mesmos dilemas, o mesmo isolamento psíquico.
Há, ainda, a construção das personagens femininas, pois mesmo quando Galera tenta dar a elas profundidade, esta é pobre e por vezes repete o erro citado no parágrafo acima: Marcela e Jasmim de "Até o Dia Em Que o Cão Morreu" e "Barba Ensopada de Sangue", respectivamente, são a mesma personagem, que está lá pra dar companhia, sexo, e demonstram pouca indignação com os ataques de diva do protagonista. Estão sempre apaixonadas e ao dispor do bonitão indiferente, do mesmo modo que Naiara em "Mãos de Cavalo". Construções capazes de esquentar qualquer debate feminista. Assim também é Vivi, ex-namorada que virou noiva do irmão em "Barba Ensopada de Sangue". Porém, acredito que estes fatores estejam ligados a uma imaturidade pessoal de Daniel Galera, não literária. Não vejo como falta de qualidade, e o próprio autor dá sinais de evolução a cada romance. Aqui analisamos "Mãos de Cavalo" comparando e contrapondo com obras anteriores e posteriores, e elas sempre apresentaram sinais de maturidade pessoal e artística de Galera. Independentemente de seus pontos positivos ou negativos, é importante frisar que o jovem escritor tem sido importante para o surgimento de uma nova geração de leitores, com fãs fervorosos, o que o torna um dos autores mais celebrados dentre os escritores modernos e com relevância no cenário da literatura nacional e até internacional por seu potencial comercial. Enquanto aguardamos novas obras do autor, fica recomendada aqui a leitura do romance analisado e também outras narrativas de Daniel Galera, que, se não puderem aceitar como um grande escritor, fiquem certos de que pelo menos encontrarão um talentosíssimo contador de histórias.
BIBLIOGRAFIA:
GALERA, Daniel. Mãos de Cavalo. São Paulo: Cia das Letras, 2006. GALERA, Daniel. Até o Dia em Que o Cão Morreu: Cia das Letras, 2007. GALERA, Daniel. Barba Ensopada de Sangue: Cia das Letras, 2012 ASSIS, Laura. A essencialidade dos “detalhes inúteis”: estratégias de representação em dois romances de Daniel Galera: Brasiliana – Journal for Brazilian Studies. Vol. 3, n.1 (Jul. 2014). ISSN 2245-4373.
Professor, Colegas, compartilho introdução do meu ensaio. Como ficou longo, segue link abaixo para leitura completa.
ResponderExcluirÉ preciso observar com bastante cautela a afirmação do professor Miguel Sanches Neto sobre Que Fim Levou Juliana Klein?, de Marcos Peres (Record, 2015, 352 páginas): “(…) desta narrativa que se vale da gramática do romance policial para cifrar uma sequência de rivalidades”. O excerto encontra-se no texto de orelhas com o título de “romance de rivalidades” e sugere que a publicação trata-se de uma típica obra do gênero policial. Essa afirmação de que o livro se insere entre os romances policiais têm recebido a adesão de muitos resenhistas sem maiores contestações; é o caso Eurídice Figueiredo que num texto especial para A Folha de São Paulo atesta “(…)é um romance policial que tem como protagonista Irineu, um delegadoque apura uma série de crimes em 2005, 2008 e 2011 em Curitiba.”; Seguindo a mesma essa linha de raciocínio, o professor Rodrigo Petrônio diz “(…)Peres se mostra um bom romancista policial que fornece falsas pistassobre o próprio romance” em texto publicado no site do Jornal Estadão. No entanto, tais afirmações carecem de reflexões mais precisas e que não se deixem cair na simplificação de determinar sua inscrição no gênero, sem ao menos questioná-la...
Link para texto completo: http://www.douglaseralldo.com.br/2015/11/romance-policial-ou-literatura-um-olhar.html
Postarei, com muito atraso, minha resenha crítica da obra "Mãos de Cavalo", de Daniel Galera, por partes, pra caber nos comentários.
ResponderExcluirA linguagem cinematográfica e a construção de personagens de Daniel Galera através de “Mãos de cavalo” e outras obras.
A obra “Mãos de Cavalo” (2006), de Daniel Galera, é o terceiro romance publicado pelo autor nascido em São Paulo, mas radicado em Porto Alegre, e filho de pais gaúchos. E é exatamente na capital gaúcha que é ambientada a narrativa em questão. O romance divide a história de Hermano, personagem principal, entre sua juventude e a vida adulta, e apresenta os momentos marcantes dessas duas etapas, conectando-as diretamente.
A história da juventude de Hermano se passa no Bairro Esplanada, onde ganhou o apelido de “Mãos de Cavalo” - título da obra - devido à sua compleição física, especialmente os braços e mãos muito compridos em relação ao corpo.
É também na juventude que os personagens secundários mais importantes são apresentados, Bonobo e sua irmã Naiara. Bonobo, que é apresentado ao leitor como um brutamontes brigão, sempre envolvido em alguma confusão e resolvendo suas questões com violência, acaba tornando-se próximo de Hermano e exerce certo fascínio sobre a personagem principal. E Naiara, irmã de Bonobo, torna-se a personagem feminina mais relevante da juventude de Hermano (e de toda a história) e seu primeiro contato com o sexo (essa passagem analisaremos com mais profundidade mais adiante).
Na fase adulta de Hermano, ele já é um cirurgião plástico renomado, casado e com uma filha. A mulher e a filha tem pouquíssima participação na história, ficam em segundo plano até em relação à Renan, instrutor de academia e amigo de Hermano, com quem viaja para praticar alpinismo e também pouco participa dos acontecimentos da narrativa.
O romance aponta o fascínio de Hermano pela violência, pelo sangue, a busca por correr riscos, em contraste com a sua covardia sempre que um embate físico era sinalizado. Dessa forma, quando ele e Bonobo são perseguidos e o amigo é morto por vingança enquanto Hermano se esconde, é o desfecho da narrativa para a fase jovem, o fim da inocência do protagonista. No desfecho do livro, Hermano, com viagem marcada até a Argentina com Renan, para uma escalada, desvia o caminho do sítio do amigo e vai passear no bairro de sua infância. Lá se depara com um grupo de garotos que persegue um terceiro, e enfim, descendo do carro com uma corda de alpinismo como arma, defende o garoto em apuros entre socos e golpes de telha, exorcizando assim a covardia que o marcou desde o fim de sua juventude até aquele exato momento.
Galera divide o livro em capítulos, fora da ordem cronológica. Intercala os episódios da juventude e da vida adulta e consegue criar dessa forma um suspense que prende o leitor. Essa forma cronologicamente deslocada com que o autor escreve a obra é marca clara da linguagem cinematográfica a que nos referimos, remetendo diretamente à obras como “Cães de Aluguel” (1992) e “Pulp Fiction” (1994), ambas de Quentin Tarantino. E aqui um adendo elogioso ao escritor: Galera desloca a continuidade cronológica de modo a identificarmos a densidade da personagem, seus anseios e medos, a construção interna que forma Hermano com e sem a maturidade da fase jovem ou adulta, enquanto Tarantino produz em sua obra uma história rasa e reta, uma forma de parecer ao espectador que ele está pensando por si, criando efeito psicológico, quando de fato está apenas encaixando uma história divertida, mas simples e retilínea. Algo como um quebra-cabeças.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir“É como se houvesse câmeras escondidas atrás dos postes registrando sua tenacidade física” – de uma correspondência com a representação possibilitada pelo cinema e essa estratégia pode ser diretamente relacionada à segunda questão presente em Mãos de Cavalo a ser enfocada na presente análise: a apropriação da linguagem cinematográfica, evidenciada não só por meio de técnicas, mas também de referências diretas. Desde a epígrafe – “Eu caminhava para a escola e ia imaginando planos em que uma grua subia aos poucos e me via lá embaixo como um pequeno objeto no meio da rua, caminhando para a escola.” –, uma frase do ator Nicolas Cage, até a recorrente referência à relação entre as experiências de Hermano e uma suposta câmera, presente em vários momentos do livro, como na passagem reproduzida a seguir:
ResponderExcluir'Às vezes a câmera surgia nos instantes cruciais de sua existência, às vezes captava a realidade de momentos banais e solitários, quando estava correndo em Ipanema e começava a chover, quando descia do ônibus e entrava pelo portão da frente do colégio, quando andava de bicicleta em alta velocidade, por horas a fio, atravessando diversos bairros da cidade, ou quando subia o Morro da Polícia como se estivesse sozinho, praticamente ignorando a companhia dos amigos, pois havia apenas ele, o morro e a câmera. Não era simplesmente sentir-se observado, imaginar testemunhas indefinidas pra cenas de sua vida. Era como se ele mesmo se destacasse do corpo para se tornar o observador da cena.' "
Ou seja, Galera não se envergonha disso, usa como artifício, abusa desse aspecto cinematográfico de alto realismo na sua escrita, o que não pode representar um defeito da obra e sim o estilo do autor. O marcado detalhismo na descrição de pessoas e lugares é ponto forte e muito celebrado em obras da escola Romântica - como em José de Alencar, por exemplo - o que Galera faz muito bem, embora na descrição das ações.
O autor usa de uma escrita moderna, quebra certos padrões, como muitos autores hoje canônicos e que sofreram críticas severas à época por romperem com certo modelo. Evidente que não venho aqui dizer que Galera será o novo Machado de Assis, que sua escrita moderna será reconhecida como a de “Macunaíma” (Mário de Andrade), mas a história da literatura brasileira deixa claro que não podemos fechar os olhos para o novo, para o diferente. Que o cânone de hoje foi criticado no passado sabemos, e só o tempo dirá o que Daniel Galera representará para a literatura anos adiante. Mas uma linguagem nova não pode representar um defeito de escrita, como diz novamente, Laura Assis:
Se a imagem é considerada na cultura contemporânea como mais autêntica e detentora de uma maior legitimidade do que o texto, buscar construir visualidades por meio da literatura aparece, portanto, como uma estratégia que segue justamente a lógica de aproximar ficção e realidade, em busca de uma elaboração verossímil do mundo, espelhando a busca pela experiência autêntica e transformando, assim, a própria busca também em matéria representável.
ResponderExcluirPara finalizar, expresso o que considero ainda o calcanhar de Aquiles do autor: a construção das personagens.
É claro que a imaturidade de Hermano adulto, por vezes, é estratégico, representa as lacunas emocionais que resultaram os acontecimentos que marcaram sua juventude. A falta de respeito por si, mesmo tendo uma vida exemplar, com família constituída e renome numa profissão de prestígio e alto retorno financeiro, o alpinismo que se tornou hobby como uma fuga da vida perfeita que acha que não merece, até o momento em que expulsa seus demônios.
Também é interessante a "transcendentalidade" da personagem Bonobo. O garoto morre em "Mãos de Cavalo" e aparece um personagem com o mesmo nome (apelido), tipo físico, personalidade e origem em "Barba Ensopada de Sangue", que mal consegue explicar sua conversão ao budismo e fala em imortalidade e reencarnação. Em certa passagem diz não saber se ainda estaria vivo se levasse a vida como em sua juventude, na zona sul de Porto Alegre.
Mas há incongruências claras na construção psicológica das personagens que soam quase inverossímeis, e também uma dificuldade do autor em sair de sua zona de conforto, algo que até melhorou em "Barba Ensopada de Sangue", todavia continua falho.
Galera desespera-se tanto para dar densidade às suas personagens que cria personagens inverossímeis em situações que se tornam, consequentemente, inverossímeis, como na passagem em que detalha o que seria a primeira relação sexual de Hermano, um garoto virgem de 15 anos que se encontra sozinho em um quarto com uma garota bonita disposta a fazer sexo com ele, e de repente acaba encontrando prazer não em uma relação convencional, mas em mordidas tão fortes a ponto de tirar sangue. Ora, entendemos que Hermano tem apreço pela dor, a violência e o sangue são temas que perpassam toda a narrativa, mas soa por demais forçado dar essa maturidade sexual a um garoto de 15 anos que nunca teve relações sexuais.
Além do mais, o que há de elogioso na retomada de Bonobo, torna-se defeito quando não intencional. O homem jovem, deslocado e blasè, bonitão e inteligente, que sempre tem facilidade com mulheres e as trata com desdém, é sempre o mesmo, seja ele Hermano em "Mãos de Cavalo", o recém formado em Letras desempregado vivendo com ajuda dos pais de "Até o Dia Em Que o Cão Morreu" ou o professor de natação e atleta que não reconhece rostos e muda-se para Garopaba em busca de revelações sobre a história do avô de "Barba Ensopada de Sangue". Os mesmos traços de personalidade, os mesmos dilemas, o mesmo isolamento psíquico.
Há, ainda, a construção das personagens femininas, pois mesmo quando Galera tenta dar a elas profundidade, esta é pobre e por vezes repete o erro citado no parágrafo acima: Marcela e Jasmim de "Até o Dia Em Que o Cão Morreu" e "Barba Ensopada de Sangue", respectivamente, são a mesma personagem, que está lá pra dar companhia, sexo, e demonstram pouca indignação com os ataques de diva do protagonista.
ResponderExcluirEstão sempre apaixonadas e ao dispor do bonitão indiferente, do mesmo modo que Naiara em "Mãos de Cavalo". Construções capazes de esquentar qualquer debate feminista. Assim também é Vivi, ex-namorada que virou noiva do irmão em "Barba Ensopada de Sangue". Porém, acredito que estes fatores estejam ligados a uma imaturidade pessoal de Daniel Galera, não literária. Não vejo como falta de qualidade, e o próprio autor dá sinais de evolução a cada romance. Aqui analisamos "Mãos de Cavalo" comparando e contrapondo com obras anteriores e posteriores, e elas sempre apresentaram sinais de maturidade pessoal e artística de Galera.
Independentemente de seus pontos positivos ou negativos, é importante frisar que o jovem escritor tem sido importante para o surgimento de uma nova geração de leitores, com fãs fervorosos, o que o torna um dos autores mais celebrados dentre os escritores modernos e com relevância no cenário da literatura nacional e até internacional por seu potencial comercial.
Enquanto aguardamos novas obras do autor, fica recomendada aqui a leitura do romance analisado e também outras narrativas de Daniel Galera, que, se não puderem aceitar como um grande escritor, fiquem certos de que pelo menos encontrarão um talentosíssimo contador de histórias.
BIBLIOGRAFIA:
GALERA, Daniel. Mãos de Cavalo. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
GALERA, Daniel. Até o Dia em Que o Cão Morreu: Cia das Letras, 2007.
GALERA, Daniel. Barba Ensopada de Sangue: Cia das Letras, 2012
ASSIS, Laura. A essencialidade dos “detalhes inúteis”: estratégias de representação em dois romances de Daniel Galera: Brasiliana – Journal for Brazilian Studies. Vol. 3, n.1 (Jul. 2014). ISSN 2245-4373.